Comunicado da Plataforma para a Formação Médica em Portugal
Share

Plataforma para a Formação Médica em Portugal manifesta o seu desagrado com as declarações recentes do Ministro da Ciência e Ensino Superior

 

Logotipos Plataforma

 

A plataforma para a formação médica em Portugal, composta pela ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina), CEMP (Conselho de Escolas Médicas Portuguesas) e OM (Ordem dos Médicos) vem manifestar o seu desagrado e discordância com as declarações recentes do Senhor Ministro da Ciência e Ensino Superior, Professor Manuel Heitor, acerca da formação médica em Portugal.

Perante as afirmações, considerações e pressões públicas do Senhor Ministro da Ciência e Ensino Superior, são várias as questões que se colocam sobre a formação médica em Portugal e que importa esclarecer:

  1. Existem falta de médicos em Portugal, ou existem falta de médicos no SNS por incapacidade de criar condições para que os profissionais fiquem no serviço público?
  2. Quer o Senhor Ministro formar mais médicos sem as condições adequadas que garantam a qualidade da formação e o respeito pelos doentes, sobretudo nas situações de mais fragilidade?
  3. Pretende o Senhor Ministro diminuir a qualidade da formação médica faltando ao respeito pelas regras definidas a nível internacional?
  4. Será que o Senhor Ministro quer tornar Portugal um país exportador de médicos (o que já vai acontecendo) competindo com países como Cuba para dominar o mercado internacional em prejuízo da qualidade da formação e dos doentes?
  5. Saberá o Senhor Ministro que Portugal tem neste momento uma situação privilegiada no que diz respeito à formação médica, ocupando o oitavo lugar (em 36) quanto ao número de novos formandos em Medicina por ano: 16,1 por 100.000 habitantes, em 2017, sendo a média da OCDE de 13,1 novos médicos por 100.000 habitantes?
  6. Ou que atualmente existe uma oferta formativa mais do que adequada às necessidades do País e que, de acordo com dados da OCDE, dos 36 países estudados, Portugal, em dados de 2017 publicados em 2019, tinha o terceiro maior número de médicos – 5,0 por 1000 habitantes – quando a média global era de 3,5 médicos por 1000 habitantes?
  7. Ou que a capacidade formativa das Faculdades de Medicina está há muito nos limites para garantir um ensino de qualidade, quer pelas suas condições de espaços físicos, quer pela ausência de capacidade de contratação de recursos humanos que permitam um rácio aluno:tutor de acordo com as recomendações internacionais, como tem sido também constante e repetidamente afirmado pela A3ES nas suas análises dos cursos de Medicina existentes?
  8. Ou que existe uma necessidade urgente de um maior investimento público nas faculdades existentes (recursos humanos, equipamentos e instalações), esse sim inexistente há muito tempo, por parte da Tutela, e essa deveria ser a sua principal preocupação, melhorar o que já existe?
  9. Ou que o aumento do número de estudantes de medicina, a verificar-se, iria naturalmente degradar a qualidade do ensino, sobretudo nas vertentes clínicas, dada a manifesta incapacidade de cumprir com rácios tutor:aluno aceitáveis, colocando em causa os direitos dos doentes a uma medicina de qualidade, incluindo a proteção da reserva de privacidade, com todas as consequências negativas daí decorrentes?
  10. Ou que o aumento do número de estudantes de medicina não equivale a um aumento do número de médicos futuros, sobretudo especialistas, por não existir capacidade formativa adequada na formação complementar especializada, apesar de todos os anos aumentar o número de vagas para especialização? Como exemplo, em 2019 um em cada quatro candidatos formados pelas escolas médicas portuguesas não obteve colocação na primeira candidatura e 63% dos candidatos formados por escolas médicas estrangeiras também não obtiveram colocação na sua primeira candidatura. É que, apesar das 1.830 vagas para especialização, 538 candidatos não tiveram hipótese de escolha. Será que o Senhor Ministro quer engrossar o número de médicos sem acesso a especialização, continuando a crescer o número de médicos sem especialidade, com deterioração da qualidade da medicina portuguesa. Já imaginou como teria sido a resposta à atual pandemia se os médicos portugueses fossem os médicos que V. Exª quer promover, indiferenciados e com uma formação “mais ou menos”? Vale a pena recordar que Portugal tem uma taxa de letalidade baixa por covid-19, o melhor indicador da atual pandemia no nosso país, graças à elevada qualidade dos nossos médicos! Respeitar a qualidade da formação médica é respeitar a vida dos doentes, é salvar vidas. Ou preferia que a nossa resposta fosse semelhante à que aconteceu em Itália, país que há uns anos atrás teve a mesma ideia brilhante, que o Senhor Ministro está agora a defender?

Senhor Ministro, o objetivo primeiro desta plataforma é ser o garante da qualidade da formação médica em Portugal, através das 3 estruturas que, de facto, em conjunto têm a competência e o conhecimento para definir as melhores estratégias que permitam assegurar esse objetivo e como implementá-las. Já tivemos por diversas vezes a oportunidade de mostrar que não existe evidência científica sólida que consubstancie a necessidade de aumentar o número de entradas nas Faculdades de Medicina existentes e que o rácio europeu de Faculdades de Medicina é de cerca de 1 Escola Médica/2 milhões de habitantes, o que significa que em Portugal bastariam 5 a 6 Escolas Médicas. O aumento de vagas em Medicina deve ter sempre em consideração uma análise detalhada e profunda, há muito solicitada pelos intervenientes desta plataforma, sobre os recursos médicos em Portugal, evitando-se a tomada de posições com base em perceções ou opiniões não fundamentadas ou de circunstância populista. Nos últimos 20 anos o número de estudantes de medicina triplicou. Em 1998 estavam inscritos na Ordem dos Médicos 31.087 médicos, 38.932 em 2008, 53.657 em 2018 e 57.725 à data de 10 de julho de 2020. No SNS, segundo dados da ACSS (Portal SNS maio 2020), existem 19.540 médicos especialistas e 10.611 médicos internos (incluindo os médicos da formação geral). Ou seja, apenas 52,3% dos médicos portugueses estão a trabalhar no SNS. E porquê? Esta é a grande questão que nos deve levar a todos a refletir sobre o insucesso das políticas de contratação pública, sobre a desvalorização dos 11 a 13 anos de estudo de um médico, do conhecimento, das competências e da enorme responsabilidade que os médicos têm na sociedade, mas também sobre as verdadeiras causas da falta de capital humano no SNS fruto do desinvestimento crónico nos recursos, equipamentos, profissionais de saúde, na excessiva burocratização e inexistência de estratégia de planeamento e organização a médio e longo prazo, entre muitas outras.

Pelo exposto, manifestamos publicamente e de forma transparente, o nosso desacordo em relação às declarações públicas do Senhor Ministro Manuel Heitor. Revelam falta de conhecimento sobre a realidade da formação médica portuguesa, sobre a distribuição dos recursos médicos, e estão desalinhadas com as melhores práticas internacionais e a extensa bibliografia existente nesta matéria, desrespeitando os doentes e o seu direito a terem profissionais de qualidade. Os argumentos utilizados não encontram justificação nos dados sobre o número de alunos e médicos existentes e necessários, quando comparados com padrões internacionais ou com a literatura, pelo que, tendo em primazia a qualidade da formação médica e a prestação de cuidados de saúde atual e futura, não podemos aceitar que, num momento de grande exceção, em que os médicos lutam pela vida das pessoas, se promova de forma abusiva a abertura de mais cursos de Medicina, exercendo uma pressão inadmissível sobre a A3ES.

Os membros desta plataforma reiteram, novamente, a sua total disponibilidade para esclarecerem a Tutela sobre as particularidades da formação médica em Portugal. Tal é fundamental para garantir um alinhamento dos decisores públicos com quem é responsável pela sua implementação no terreno. Hoje, e também perante os enormes desafios na Saúde enfrentados e que ainda teremos pela frente, consideramos que é tempo de união e não de criar confusão e ceder a outros interesses, que não sejam os de garantir as condições certas de formação moderna do médico, para responder aos desafios da Saúde do século XXI.

 

Lisboa, 28 de julho 2020.

 

Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM)

Maria do Mar, Presidente

 

Ordem dos Médicos (OM)

Miguel Guimarães, Bastonário

 

Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP)

Fausto J. Pinto, Presidente

 

Aceda ao comunicado aqui