“A tempestade perfeita – quando a COVID-19 coincidir com a época gripal”
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Francisco Antunes, Professor Catedrático Jubilado que foi Diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do CHULN-HSM e Diretor da Clínica Universitária de Doenças Infecciosas da FMUL durante 20 anos, introduz o tema e apresenta as suas considerações sobre o período que se avizinha e sobre o qual se têm voltado atenções, analisando algumas questões que permanecem sem resposta no contexto da atual pandemia.

pessoas com máscaras de proteção na rua e símbolo de uso de máscara

Introdução

No próximo Outono, pela primeira vez, a Europa e, em particular, Portugal vão ter que lidar com a época da gripe sazonal, em plena pandemia da COVID-19 (contrariamente à gripe, a COVID-19 parece não ter a característica sazonal, dado o aumento crescente de casos, um pouco por toda a Europa, em pleno verão).

Questões múltiplas, para as quais não se dispõe, ainda, de respostas seguras, vêm emergindo, e, em particular, em que moldes a coinfecção (COVID-19/gripe) pode agravar a evolução da COVID-19 e vice-versa. Não se sabe até que ponto a vacinação contra a gripe poderá contribuir para a protecção contra a COVID-19 ou até onde as medidas de mitigação não farmacológicas (distanciamento físico, lavagem das mãos, uso de máscara e isolamento/quarentena) poderão reduzir o peso das doenças respiratórias na próxima época gripal. Algumas pistas vêm de estudos realizados na China, quando, no final do ano de 2019, a gripe circulava neste País e as infecções por SARS-CoV-2 começaram a emergir e, também, no hemisfério sul, que está a meio da época gripal. No entretanto, há que reter, para já, dois aspectos relevantes – os testes de diagnóstico e a gravidade da gripe sazonal:

  1. Testes de diagnóstico – para distinguir a gripe da COVID-19 são necessários testes de diagnóstico rápido e amplamente disponíveis, dado que há implicações de prognóstico importantes e as manifestações clínicas de ambas, pelo menos numa fase inicial, são idênticas, mas as intervenções terapêuticas são diferentes. Apesar das medidas de suporte serem semelhantes, há algumas diferenças nas recomendações terapêuticas para uma e outra, por exemplo, enquanto para a gripe estão disponíveis antivíricos específicos e os corticoides estão contraindicados (associados a maior mortalidade), a não ser que clinicamente justificados (por exemplo, asma). Para a COVID-19, o remdesivir é o único antivírico que está aprovado e a dexametasona parece ser eficaz, para alguns destes doentes. Por outro lado, o reconhecimento de que a sintomatologia respiratória é devida à gripe ou à COVID-19 é essencial, pela necessidade de se adoptarem medidas de prevenção, mais estritas para a COVID-19 do que para a gripe, dado o maior risco de transmissibilidade para a SARS-CoV-2 do que para os vírus da gripe. Além do mais, é relevante esta distinção, dado que é vital para a vigilância epidemiológica, no sentido de se determinar qual é a contribuição de cada uma destas infecções víricas para o peso das doenças respiratórias. Como acima referido, a actual situação no hemisfério sul, em plena época da gripe sazonal e em plena pandemia da COVID-19, pode dar algumas indicações (ou não) do que poderá acontecer na próxima estação gripal entre nós, no hemisfério norte. Ali, a gripe tem tido um comportamento benigno, admitindo-se que, muito provavelmente, as medidas de mitigação para a COVID-19 possam ter impacto na redução da disseminação dos outros vírus respiratórios, como é o caso da gripe.
  2. Gravidade da gripe sazonal – a gravidade da gripe sazonal está associada à virulência da estirpe, à inadequada taxa de vacinação ou a ambas, que, imbricada à COVID-19, podem exercer pressão sobre os recursos dos serviços de saúde e, em particular, sobre as unidades de cuidados intensivos.

 

Coinfecção COVID-19/gripe

Parece ser pequeno o risco da coinfecção COVID-19/gripe, tendo em consideração que 3-4% da população contrai a infecção por SARS-CoV-2 e 10-20% a gripe, admitindo-se, assim, que possa ser rara a coinfecção entre estes vírus respiratórios. Na região metropolitana de Nova Iorque, daqueles doentes com COVID-19, 42 (2,1%) deles estavam coinfectados com outros vírus respiratórios e, apenas, um com vírus da gripe. No entretanto, na Califórnia do Norte a coinfecção foi de 20,7% (10 vezes superior), mas apenas 0,9% estava coinfectado com vírus da gripe. Por outro lado, um estudo num hospital de Wuhan mostrou que, em casos confirmados por PCR de COVID-19, 11,8% estava coinfectado por vírus da gripe, estando a coinfecção relacionada com risco para maior tempo de internamento e carga vírica mais elevada para SARS-CoV-2. Assim, faz sentido que a utilização de máscaras, o distanciamento social e as medidas de confinamento, destinadas à prevenção da COVID-19, possam minimizar a transmissão de outras doenças infecciosas respiratórias.

ampolas vacina

Impacto da vacinação da gripe

Do ponto de vista geral, a vacinação contra a gripe em doentes com mais de 65 anos de idade parece reduzir a mortalidade associada à COVID-19. Um estudo realizado no Brasil, envolvendo cerca de 93 mil doentes com COVID-19, mostrou que naqueles vacinados (recentemente) contra a gripe, houve menos 8% de internamentos em cuidados intensivos, menos 18% de suporte invasivo respiratório e menos 17% de mortalidade, do que nos não vacinados.

A vacinação contra a gripe durante a pandemia por COVID-19

A vacinação contra a gripe é mais importante do que nunca, em plena pandemia por COVID-19. Se bem que o peso da gripe possa variar de ano para ano, a vacinação pode reduzir a gravidade da doença e prevenir as hospitalizações. Assim, torna-se necessária uma reserva adequada de doses, por forma a poder imunizar não só todos aqueles com mais de 65 anos de idade (a que está associada a maior mortalidade), mas, também, aqueles com doenças crónicas (asma, diabetes, doenças cardiovasculares, por exemplo) e os trabalhadores da saúde. No entretanto, tendo em consideração o mais que provável aumento da procura pela vacina da gripe e a necessidade de vacinação para aqueles mais vulneráveis, têm sido recomendadas algumas medidas adicionais, por forma a minimizar o risco de aglomeração nas unidades de saúde e de maior motivação para a vacinação, tais como:

  1. Abertura de centros de vacinação de proximidade, para além das unidades de saúde para, por exemplo, facilitar o acesso a franjas da população com dificuldades na deslocação e na mobilização.
  2. Dinamização e mobilização da população com mensagens fortes acerca da importância da vacinação contra a gripe, antes do início da campanha de vacinação, em Outubro. Nas mensagens deve ser dada ênfase: i) ao facto de a vacina da gripe não aumentar o risco de se contrair a COVID-19; ii) de que a vacina da gripe não protege contra este novo coronavírus e iii) de que, apesar de distanciamento social, da lavagem das mãos e do uso de máscaras, tal não dispensa a vacinação contra a gripe. Algumas universidades americanas anunciaram a exigência da vacinação contra a gripe para estudantes e pessoal docente e não-docente, aquando do regresso ao campus.

Mesmo que a próxima época sazonal da gripe tenha características de benignidade, a presença de SARS-CoV-2 circulante poderá aumentar, significativamente, os casos de doenças respiratórias agudas e aumentar a pressão sobre os recursos do sistema de saúde, incluindo os hospitais, os serviços de urgência e os centros de saúde. A eficácia da vacinação contra a gripe depende de vários factores, tais como, a idade e o estado de saúde do vacinado e da correlação entre os vírus representados na vacina e aqueles que circulam na comunidade. Mesmo no caso de não haver uma correlação optimizada e de que a eficácia da vacina seja baixa, a vacinação da gripe resulta na redução substancial do peso da doença, diminuindo a morbilidade e a mortalidade e, ainda, atenuando a tensão sobre o sistema de cuidados de saúde.

Até que uma vacina segura e eficaz contra a COVID-19 esteja disponível e a maioria da população imunizada, os casos de COVID-19 e a morbimortalidade que lhe está associada irão persistir por mais algum tempo.

imagem de vírus com vacina na frente

A RETER:

  • A partir de Outubro será mais do que provável a circulação, entre nós, do vírus da gripe sazonal e de SARS-CoV-2, cujas consequências são imprevisíveis.
  • A despeito da menor ou maior gravidade da gripe, na próxima estação sazonal, a presença de SARS-CoV- 2 poderá ampliar, significativamente, os casos de doenças respiratórias agudas e a pressão sobre os recursos do sistema de saúde.
  • Para distinguir a gripe da COVID-19 é necessária a disponibilidade de testes rápidos de diagnóstico para o vírus da gripe e para SARS-CoV-2, dado que o quadro clínico é semelhante, mas as intervenções terapêuticas e as medidas de prevenção são diferentes.
  • As medidas adoptadas de prevenção para a COVID-19 (distanciamento social, uso de máscaras e lavagem das mãos) podem minimizar a transmissão de outras doenças respiratórias, incluindo a gripe.
  • A vacinação contra a gripe, em grupos populacionais mais vulneráveis (> 65 anos de idade, portadores de doenças crónicas e trabalhadores da saúde), poderá reduzir a morbi-mortalidade dos doentes com COVID-19, mas não protege da infecção por SARS-CoV-2.
  • A vacinação contra a gripe, independentemente da sua eficácia na prevenção da doença, reduz a sua gravidade e previne a hospitalização.
  • Tendo em conta o mais que provável aumento da procura da vacinação contra a gripe, torna-se prudente o aumento da acessibilidade a centros de vacinação, para além das unidades de saúde, por forma a evitar aglomerações e a desmobilização.
  • O aumento provável dos casos de doenças respiratórias agudas e a maior pressão sobre os recursos do sistema de saúde obrigam a maior disseminação da informação para a mobilização da população, com mensagens fortes acerca da importância da vacinação contra a gripe, naqueles grupos mais vulneráveis.
  • As mensagens devem, também, dar ênfase a: i) a vacina da gripe não aumenta o risco de se contrair a COVID-19; ii) a vacina da gripe não protege contra a COVID-19; iii) apesar do distanciamento social, de uso de máscaras e da lavagem das mãos, tal não dispensa a vacinação contra a gripe.