No passado mês de outubro foi publicado pela Direção-Geral da Saúde (através do seu Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável) o Manual de Dietas Hospitalares que contou com a colaboração da Ordem dos Nutricionistas. No mesmo momento foi ainda publicado o Despacho n.º 10511/2021, pelo Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, que determina a efetiva implementação do referido manual nas unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS), pela determinação de diretrizes para os contratos de prestação de serviço de fornecimento de alimentação nos referidos estabelecimentos.
O Manual de Dietas Hospitalares é o primeiro documento orientador para a alimentação fornecida em unidades hospitalares do SNS, e constitui um passo importante da nutrição clínica em Portugal, já que desconheço existência de documento europeu equivalente elaborado com semelhante rigor científico e suporte técnico; apenas isto já é motivo de orgulho por parte de todos os nutricionistas portugueses. Mas é necessária uma reflexão mais aprofundada para apurar as várias conquistas e vitórias que estão espelhadas nesta publicação.
Primeiro importa contextualizar...
O atual Plano Nacional de Saúde definiu como eixos estratégicos o acesso adequado a cuidados de saúde de qualidade e no quadro da Resolução ResAP (2003)3 do Conselho da Europa sobre alimentação e cuidados nutricionais nos hospitais, adotada por Portugal, foi recomendada a elaboração e aplicação de recomendações nacionais para o cuidado nutricional nos hospitais. Neste contexto foram já implementadas várias medidas de saúde pública como as relacionadas com as máquinas de venda automática nas instituições do SNS ou a tributação sobre as bebidas açucaradas. O Manual de Dietas Hospitalares agora publicado surge também na sequência destas resoluções e revela várias conquistas sobretudo na área da nutrição clínica.
Apesar da maioria dos hospitais possuírem internamente um documento equivalente, ele difere de hospital para hospital no que respeita aos tipos de dietas, à sua nomenclatura, à composição das refeições e também às capitações utilizadas, conduzindo assim a problemas relacionados com a prescrição e a uma disparidade no que se refere aos custos associados ao fornecimento de alimentação.
E que conquistas?
Antes de comentar o conteúdo deste documento importa salientar que a preocupação que serviu de mote para a sua elaboração reflete o franco reconhecimento da alimentação nos estabelecimentos hospitalares como uma das vertentes da prestação de cuidados de saúde de qualidade. Na qualidade de nutricionista ao exercício de atividade clínica hospitalar naturalmente reconheço que esta é determinante para a recuperação do doente e contribui diretamente para o seu bem-estar e qualidade de vida, para a diminuição da desnutrição e de défices nutricionais e tem impacto em diversos outcomes clínicos, nomeadamente na redução do tempo de internamento e da morbi-/ mortalidade. Certamente qualquer nutricionista reconhecerá estas associações, mas é fundamental que outros profissionais de saúde, administradores hospitalares e até outros decisores políticos possam ter esse reconhecimento; este documento contribui, em larga medida, para salientar estes aspetos e legitimar o fundamento de certas opções nutricionais.
Relativamente ao conteúdo gostaria de evidenciar alguns aspetos relevantes:
- a uniformização da terminologia aplicada à nutrição clínica;
- a padronização das características nutricionais e dietéticas de cada tipo de dieta;
- o papel da alimentação hospitalar como educação terapêutica;
- a gestão dos serviços de fornecimento da alimentação hospitalar;
- o desperdício de recursos e alimentos.
Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar o importante passo no sentido da uniformização de terminologia aplicada à nutrição clínica. Se é de terapia nutricional que falamos, é fundamental utilizarmos a mesma terminologia a nível nacional, de forma a que a prescrição de determinada dieta seja nutricionalmente equivalente em qualquer unidade hospitalar do SNS, à semelhança do que se verifica com outras terapêuticas. Os processos de comunicação que ocorrem na prescrição de dietas hospitalares, sejam pela linguagem oral ou escrita, estão sujeitos a instabilidades e falhas que podem originar erros que resultam no fornecimento de alimentos não compatíveis com as necessidades nutricionais do doente. A melhoria destes processos pela uniformização da terminologia permite, não só a melhoria e transparência do processo de prescrição, mas também previne erros associados, facilitando a comunicação entre os diferentes profissionais intra- e entre hospitais.
A padronização das características nutricionais e dietéticas de cada tipo de dieta contribui para a melhoria da qualidade nutricional das dietas hospitalares e do cuidado nutricional, que desempenham um papel fulcral na prevenção da deterioração do estado nutricional do doente. Neste manual todas as dietas foram concebidas de acordo com as necessidades nutricionais estimadas a partir das recomendações da Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA – European Food Safety Authority) e o número de porções de cada grupo de alimentos foi definido de acordo com as recomendações da Roda dos Alimentos. Estes critérios foram, ainda, ponderados de acordo com os hábitos de consumo alimentar dos portugueses de acordo com o Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física 2015-2016. O resultado da aplicação destes critérios e de guidelines específicas para determinadas condições clínicas é um conjunto de planos alimentares com capitações bem definidas, confeções aplicáveis e orientações para elaboração de ementas, com flexibilidade permitida por um conjunto de equivalências alimentares, o que permitirá a cada instituição definir algumas opções de acordo com as suas especificidades.
De uma forma inovadora, este Manual propõe 2 níveis de prescrição. O 1º nível contempla as dietas padrão (adulto e pediátrico), as dietas de opção individual (ovo-lacto-vegetariana e vegetariana) e as dietas de textura modificada. O 2º nível de prescrição contempla as dietas terapêuticas (que contemplam um amplo espectro de aplicabilidade clínica). A prescrição da dieta deve sempre considerar a prescrição de uma dieta do 1º nível, que poderá ser complementada com uma ou mais dietas do 2º nível. Esta inovação vai certamente revolucionar a prescrição das dietas e poderá ainda constituir um elemento facilitador, na medida em que a possibilidade de conjugar diferentes tipologias de dieta evita a necessidade de personalização apenas por essa conjugação não estar prevista em manual. No entanto, e de forma expectante, aguardo a operacionalização destas medidas; certamente esta proposta irá constituir uma maior dificuldade para as empresas adjudicatárias, uma vez que a contabilização das dietas e dos géneros alimentares que as compõem será de maior complexidade; acresce, ainda, o maior grau de complexidade para as empregadas de distribuição personalizada. No entanto, creio que estes possíveis entraves serão certamente resolvidos com recurso a sistemas tecnológicos e pela aposta na formação do pessoal, respetivamente.
Outro aspeto a salientar decorrente deste Manual é o papel da alimentação hospitalar como educação terapêutica. Naturalmente, o fornecimento da alimentação em ambiente hospitalar proporciona, também, uma oportunidade para adotar hábitos alimentares saudáveis, particularmente no caso de utentes com doenças crónicas associadas à alimentação. Importa assim implementar uma política alimentar que se traduza na adoção de recomendações que visem combater a desnutrição hospitalar, mas também que promovam aquisição de hábitos alimentares saudáveis – seja de uma forma generalista ou direcionada para determinada(s) patologia(s). Neste contexto, este Manual é de vital importância também no papel de educação terapêutica para o doente internado que recebe terapia nutricional adequada e idêntica para a mesma tipologia de dieta em qualquer unidade de saúde do SNS.
A maior eficiência e racionalização na gestão, com a inerente redução dos desperdícios alimentares e outros recursos decorrem diretamente da implementação do Manual, o que certamente irá contribuir para a sustentabilidade do SNS. Ainda neste contexto, e pela expectável melhoria/ reversão da desnutrição hospitalar, será de antever uma diminuição significativa dos custos económicos e em saúde já amplamente descritos na literatura.
Este Manual constitui uma peça importante no puzzle da nutrição clínica em Portugal. O melhor resultado da sua aplicação no âmbito da política alimentar e nutricional nos estabelecimentos hospitalares do SNS requer, ainda, a identificação do risco nutricional, a codificação do diagnóstico nutricional e a intervenção nutricional adequadas, as peças restantes fundamentais para a melhoria do estado nutricional dos doentes internados em hospitais do SNS.
Ana Brito Costa