Cátia Reis é licenciada em Biologia Marinha e certamente que viver perto do mar a influenciou neste gosto pelas marés e pela vida que nela habita. Natural de Portimão, cresceu com o pé na areia, mas o destino desviou-a do caminho que tinha traçado. Apesar de não fazer grandes planos, tinha uma ideia do percurso que queria fazer, mas contra factos não há argumentos e, em vez de lutar conta eles, aceitou-os, transformou-os e fez deles o seu novo plano A.
Veio estudar para Lisboa quando entrou na faculdade. Durante algum tempo ficou numa residência universitária, mas “distraía-me facilmente,” e por isso decidiu arrendar um quarto onde pudesse estar mais concentrada nos estudos.
Quando não dormir determina um percurso…
Era bolseira e as despesas somavam-se. Para pagar as contas acabou por procurar trabalho. Alta, bonita, com facilidade em falar línguas, facilmente entrou no mundo da aviação onde se tornou assistente de bordo. Viajava muito e dormia pouco. “Pedia sempre para voar ao fim de semana e durante a noite, reservando o dia para as aulas” Toda esta proatividade tinha um preço, “andava sempre com um enorme déficit de sono. Durante a noite, no avião, quase não dormia e logo que aterrava ia para a faculdade.” Foram anos nesta abstinência de sono que, não sendo nada saudável, acabou por lhe dar um novo propósito de vida, profissional. “Foi ali que, sem consciência, comecei a traçar o meu percurso,” diz.
Quando concluiu a licenciatura optou por fazer um mestrado. Foi aqui que se deu a viragem no seu percurso. “Eu queria biologia marinha, mas a determinada altura comecei a interessar-me por pessoas e quis perceber o que acontecia com o meu organismo, quando eu não dormia.” Seguiu-se um mestrado em Biologia Humana e Ambiente. “Uma das coisas que que queria estudar era a relação entre o Ser humano e o ambiente.” Sempre curiosa, cresceu com dúvidas e com muitas perguntas para fazer. O mestrado respondeu a algumas, mas a grande mais valia foram as ferramentas que lhe possibilitaram continuar a desbravar caminho, e foi isso que fez. “Interessava-me perceber a génese da fadiga e foi então que ingressei na Autoridade Nacional da Aviação Civil no departamento de Medicina Aeronáutica.” Tinha um grupo de pessoas jovens e saudáveis que, tal como ela, variavam muito de horários, experienciando muitos ciclos circadianos e sofriam por isso de horários trocados e sonos agitados e pouco regeneradores. Quais as consequências dessa falta de descanso nos vários órgãos do nosso organismo e que sequelas deixa?
As perguntas são pertinentes, mas encontrou algumas dificuldades não só no acesso a informação que, no caso dos pilotos de linha aérea “que eram o meu objeto de estudo”, era quase toda classificada, mas também porque “não estava muito feliz porque não tinha uma medida objetiva, um marcador que validasse os dados.” Apesar de ainda ter avançado com alguns inquéritos e recolha de informação, acabou por abandonar este estudo, mas não por muito tempo.
Sempre na temática da falta do sono, começou a interessar-se pela disrupção dos ciclos circadianos e essa busca de informação levou-a a assistir a congressos, palestras e a ler muito sobre o assunto. Um dia conheceu aquele que viria a ser o seu coorientador de doutoramento: Till Roenneberg. É professor de cronobiologia no Instituto de Psicologia Clínica na Universidade Ludwig -Maximilian, em Munique e movimenta-se na temática que interessa a Cátia Reis. Falaram, trocaram ideias e foi convidada para trabalhar no seu laboratório na Alemanha. Contudo, isso era uma impossibilidade. Nessa época já ela era casada e tinha duas filhas. O prazer da descoberta e do conhecimento tinha de ser conciliado com tarefas mais mundanas, mas rapidamente encontraram uma solução que passou por uma parceria híbrida com algumas idas à Alemanha, sempre que necessário, reuniões semanais e muita troca de mails. “Ainda não tinha havido a pandemia e já estávamos a trabalhar com este método,” afirma recordando que o vírus SARS-CoC-2 introduziu novas formas de trabalho que até então não estavam implementadas.
Cátia Reis teve dois coordenadores, Till Roenneberg na vertente teórica da cronobiologia e a Professora Teresa Paiva mais na área clínica, com acesso a histórico de doentes com patologias do sono.
Este Doutoramento que fez na FMUL “EnvironmentalHealthCo” foi concluído em 2020 com nota máxima “distinção e louvor por unanimidade” exigiu muito esforço e dedicação. Muitas horas de trabalho passadas a estudar dados que vinham da observação comportamental “porque havia monitorização de pessoas e esses dados tinham de ser recolhidos e trabalhados”. Recorriam a actigrafia que são dados recolhidos a partir de uma espécie de relógio que as pessoas usam e que monitoriza a temperatura, a exposição à luz, a quantidade de luz a que uma pessoa está exposta, as horas a que se deita e levanta e quantas horas está acordado bem como quantas dorme. “As medições eram feitas durante vários dias e eu estava focada nas perturbações do ciclo circadiano”.
Existem muitas patologias associadas ao sono, mas intimamente ligadas ao ciclo circadiano Cátia destaca algumas, “síndrome de atraso de fase do sono, comum nos adolescentes, e avanço de fase do sono, comum nas pessoas mais velhas. A primeira perturbação é caracterizada por um atraso na hora de adormecer e acordar (ex. 03h00-11h00) e o segundo caso caracteriza-se por um avanço na hora de adormecer e acordar (ex. 19h00-03h00). Existem mais patologias associadas à alteração do ritmo sono-vigília como no caso dos doentes de alzheimer (ritmo irregular de sono) e ainda o caso dos cegos que não conseguem receber o sinal da luz que permite a sincronização ao ritmo dia-noite e que tem consequências na organização dos ritmos biológicos, nomeadamente do sono.
A luz é um sincronizador do nosso organismo e é determinante na regulação dos ciclos de sono, mas sozinha não basta. O cronotipo que é se não mais do que a hora preferencial do dia para executar diversos comportamentos tais como dormir, é ditado por três fatores: genética, exposição à luz e a idade da pessoa. Temos assim diferentes cronotipos endógenos que têm de se adaptar a um ritmo diário convencionado, mas cada relógio biológico pode conter um atraso ou um avanço e estar desalinhado com a hora convencionada. Este desajuste leva a períodos de sono insuficientes que têm múltiplas e variadas consequências. “Logo à partida nas relações emocionais, porque dormir mal provoca irritabilidade.” Mas há mais, “a performance académica e física também são afetadas. Há dificuldades de concentração e de retenção, aquilo a que chamamos lentidão cognitiva. Quanto à parte física, os atletas de alta competição dão grande importância ao descanso porque os níveis de rendimento são afetados quando o descanso não é suficiente. Também se sabe que há uma associação entre a doença cardiometabólica e também a uma menor proteção imunitária e como tal, as pessoas que dormem pouco, ficam também mais vulneráveis à doença. Por exemplo, antes de se levar uma vacina é importante que se durma bem para que o nosso sistema imunitário consiga produzir os anticorpos necessários. Quando temos por exemplo uma gripe temos sono, não é? Isso acontece, porque o nosso organismo está a recrutar todas as forças do Sistema Imunitário para combater os vírus que estão em circulação. Por isso dormir é tão importante.”
Trabalhar os ritmos endógenos circadianos pode ser determinante para resolver as doenças do sono, mas há ainda outras aplicações para esta relação de simbiose determinante no bem-estar do Ser Humano. Por exemplo há países onde as luzes das enfermarias mimetizam a luz natural, e também já há estudos que visam identificar qual a hora do dia na qual a dor é mais severa para que a medicação seja ajustada. Assim, permite não só tornar mais eficiente a toma daquela medicação como diminuir a dose administrada. “Em França está a ser feito um estudo com doentes reumatológicos com resultados muito positivos.”
A comunidade médica exige sempre evidência científica e é nisso que estão a trabalhar os grupos que estudam estas particularidades, porque “o que tentamos fazer é utilizar os conhecimentos da biologia de cada doente para otimizar o tratamento das suas doenças. Começa a surgir uma nova área da medicina que é a medicina circadiana. Já existem países que aplicam técnicas direcionadas com a criação de Hospitais Circadianos.”
Foi aluna FMUL durante o doutoramento e a primeira a apresentar a tese online, porque em 2020 estávamos em plena pandemia. Mas isso já passou. Agora regressa a este “palco” para lecionar o curso “Introdução à Biologia e Medicina Circadiana”, na Escola de Pós-graduação da Universidade de Lisboa e explica a importância desta formação e a quem se destina: “até há 50 anos o tema do nosso curso era ainda um mistério: a existência e função de mecanismos biológicos inatos para reconhecer a hora, local do dia, e medir a passagem do tempo (“relógios” endógenos circadianos). Embora o impacto cognitivo, médico e social do tempo faça parte da experiência de vida de todos, para a maioria dos investigadores e profissionais biomédicos existe uma lacuna no seu conhecimento fundamental e funcional nesta área.
Este curso foi desenvolvido para uma ampla gama de candidatos que procuram uma base de princípios básicos e lições práticas em saúde e bem-estar, incluindo investigadores e clínicos que procuram uma preparação especializada para a prática da biologia circadiana em sala de aula, laboratório, hospital ou clínica.
Este curso está aberto a alunos de Mestrado, Doutoramento ou mesmo profissionais que trabalhem em diferentes áreas onde o conhecimento em biologia circadiana é essencial, por exemplo, medicina, desporto, farmácia, psicologia, enfermagem.
As candidaturas vão de 3 a 30 de Abril e o curso de 22 a 26 de maio das 15h às 19 horas.
Corpo docente:
Cátia Reis (CR)
Luísa Vaqueiro Lopes (LVL)
Joaquim Ferreira (JF)
Ana Rita Peralta (ARP)
William Schwartz (WS)
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial