Se no ano passado lhe perguntassem se valeu a pena tudo o que passou, ele faria primeiro a gestão da sua própria frustração e só depois responderia de forma calma e calculada. Foi na verdade o “erro” que lhe valeu o crescimento maduro de um rapaz que não aparenta ter apenas 18 anos.
Minutos depois o Lourenço concluiria, com ele mesmo, que não só não houve erro, como a mudança da corrente em nada piorou a sua vida, bem pelo contrário. Desafios de um caminho que é como o mar, admiravelmente turbulento e indomável, mas que pode ser aliado se for respeitado, por nele existirem tantos momentos de serenidade e beleza. Paralelo inequívoco depois de perceber que faz competição de caça submarina desde os 6 anos e compete em provas nacionais desde os 16, tendo sido até agora o atleta mais novo nessa competição.
Conhecemo-nos numa tarde solarenga, dia ideal para a sessão fotográfica que aceitou fazer como um dos rostos oficias da Faculdade de Medicina, do curso de Ciências da Nutrição. Enquanto percorríamos os corredores do Hospital de Santa Maria, fiquei para trás e acompanhei os alunos que connosco iriam fotografar. Com poucas palavras e menos perguntas, limitei-me a perceber algumas das motivações imediatas daqueles três estudantes. No 1º ano, o Lourenço contava que a sua grande meta era ser médico, mas que um deslize não o permitiu realizar o sonho no tempo em que queria. Sem mais perguntas, fiquei com a sensação que o sonho não tinha morrido, no entanto, hoje dizia-me com orgulho estar a adorar Nutrição.
Fotografias captadas numa fração de minutos. Poder de encaixe fácil e generosidade característica de quem vê a vida a sorrir, foi-se adaptando à circunstância dos seus pares, ora baixando a sua posição, ora sorrindo contra o sol. O que se fotografou é exatamente quem o Lourenço é. Maleável ao que o rodeia, como o faz com o mar, respeita as normas e aproveita o balanço da vida para crescer com ela, mesmo que a corrente o leve para lugar sem pé.
Dias depois voltava a encontrar o Lourenço no edifício onde tem mais aulas, o mais recente da Faculdade, o Edf. Reynaldo dos Santos. Propus-lhe uma conversa para darmos a conhecer uma das nossas caras oficias. Algum tempo depois ficaria claro que ele era exemplo importante de ser mostrado. Porque afinal o Lourenço escolheu desde sempre o caminho que tem.
Às 10h da manhã de uma sexta-feira sem aulas, apareceu sorridente. Podia ter aproveitado para prolongar mais cedo o fim-de-semana e manter-se por Azeitão, onde vive, mas não ponderou sequer trocar o dia, pois os compromissos assumem-se como as competições, com foco e compromisso.
Foi depois de uma consulta de Cardiologia, para avaliar se poderia mergulhar a uma maior profundidade, que recebeu um convite inesperado, ir passar um dia ao Hospital de Santa Cruz com o seu médico. Estava no meio do secundário quando passou um dia com o seu cardiologista pediátrico. Tinha uma prova de caça submarina e queria entrar na competição nacional sénior, mas como era ainda sub-19, precisou de prestar provas físicas para provar que tinha as condições cardíacas adequadas para a competição mais dura. Em pleno período covid, o desafio era tão tentador quanto estimulante, porque tinha a mesma dose de risco e de desafio lançado, exigindo-lhe empenho e responsabilidade diante do papel proposto.
Apaixonado por matemática e dono de médias a tocar entre o 19 e o 20, a dúvida que tivera até ao momento de Santa Cruz, era escolher qual o melhor rumo profissional, seria a engenharia mecânica, a biomédica, ou talvez a medicina. Mas nesse dia, que descreve como uma criança que entra num filme e convive de perto com os seus super-heróis, percebeu que se duvidara do caminho a seguir, ele já estava afinal cravado no seu destino, como a via láctea desenha a luz na noite do céu. Ia ser médico.
Talvez por precisar de estabelecer metas bem reais para a competição que faz debaixo de água, a regra da superfície parecia-lhe mais fácil de se alcançar. Chegar à profundidade habitual da nota de matemática e escolher o seu lugar à primeira.
Sobre o Lourenço pode-se dizer que aprendeu a adaptar-se à água, como à terra firme, o que se explica pela média de 5 horas que passa em cada prova no mar, em apneia e sem auxílio respiratório, com profundidas que podem atingir os 12 a 15 metros (o seu máximo).
O seu testemunho é o de um rapaz real que, como tantos, não consegue sempre o que sonhou. Não pelo menos à primeira.
Isso não o diminui e não o envergonhou, talvez pela educação que recebeu e que a mantém como regra de equilíbrio, falhar não é fraqueza, o importante é dar sempre o melhor de si e continuar a tentar.
Mas há sempre um momento, por mais que se treine repetidas vezes a mesma rotina, algo trai o hábito.
No seu ano de candidatura a realidade mudou, fruto de quase dois anos de pandemia e em telescola, as notas e os métodos de avaliação mudaram. A alegada fraude referida por muitos estudantes do secundário, foi um dos fatores que mais causou discórdia sobre as avaliações finais. Fintar as regras podia ser desafiante para quem se quisesse superar, para quem quisesse chegar à meta talvez sem tanto empenho, ou esforço.
Por exclusiva vontade própria ponderou repetir o 11º ano, para contrariar alguma desmotivação fruto da pandemia e das perdas que com ela vieram. A pandemia marcava-o com duas despedidas muito próximas, dois avós, um materno e outro paterno. Com uma família muito estruturada, o Lourenço é o irmão do meio, entre a irmã mais velha e o mais novo que também lhe segue as pisadas da caça submarina. Com os avós por perto, Lourenço acabou por observar a degradação da vida de alguém que se ama e cuja impotência de reverter o quadro clínico é grande. Até por esse motivo, a Medicina também o seduziu, como se lhe pedisse para ser mais um aliado da vida.
Foi então que uma noite mal dormida fazia os estragos que viriam a ter efeitos. De cabeça exausta, a verdade é que a rapidez habitual do raciocínio estava agora comprometida, "eu demorava mais tempo a fazer o raciocínio e o pior é que quando voltei a casa, fiz o exame todo de seguida, mas naquela altura eu não consegui, precisava de algo para me desbloquear, mas não consegui”. O Lourenço sabia que não havia mais 19 nenhum na nota final.
Como uma onda que propaga o seu movimento, das duas primeiras opções que eram Medicina na Nova e depois na FMUL, seguiam-se outros caminhos, sempre ligados à saúde. A escolha em Dentária, era a sua terceira opção, mas também essa disparara de igual forma. Ciências da Nutrição da FMUL era o curso ligado à saúde que se apresentava com o mais forte plano curricular.
Por tudo isto guarda o dia 28 de setembro como o dia do grande embate das convicções. Todas as estruturas que tinha como certas acabavam de ruir. Como um peixe presa que foge, Lourenço perdera os seus grandes alvos e, subitamente, as águas pareciam-lhe turvas para poder ver ao seu redor.
Como é que te sentiste nesse momento em que percebes que afinal não tinhas conseguido chegar onde querias?
Lourenço: (Dá um suspiro misturado num sorriso) Demorou a aceitar um pouco... Mas pessoalmente tenho a convicção que as coisas que nos acontecem têm uma razão de ser.
Já encontraste essa razão?
Lourenço: Acho que sim. Não devia contar isto, mas eu sempre quis ir para a Nova Medical School. Era a minha primeira opção e eu tinha um plano totalmente estruturado para ir para lá. Mas afinal, com tudo o que aqui passei, descobri que esta é a minha Faculdade, desde o primeiro dia em que cá entrei. Demorou algum tempo a chegar a esta conclusão, mas hoje entendo que aquele dia menos bom me trouxe ao lugar onde eu pertenço. Eu sou daqui.
Falamos do teu processo de admissão e de repente parece que estamos a dizer que tinhas uma média de meio de escala, mas não, terminaste com 18.1 e mesmo assim não entraste em Medicina. É normal que as convicções saiam abaladas, não? Qual foi o papel dos teus pais nesta construção da tua auto-estima?
Lourenço: Ajuda muito ter irmãos porque temos sempre o termo da comparação e vemos que eles têm outras qualidades melhores que as nossas. Aprendemos a lidar com o "não" e adaptamo-nos melhor às circunstâncias. Tenho um bom exemplo daquilo que nos foi ensinado. Os meus pais nunca nos deixaram ter videojogos em casa. E nós podíamos ter, ou seja, havia essa capacidade financeira. Eu chateava-me e perguntava porquê. Eles diziam sempre que mais tarde iriamos perceber as decisões. Efetivamente não me fez falta esses videojogos e essa pequena frustração ensinou a que soubéssemos lidar com a realidade. Saber que nada é garantido é uma grande aprendizagem. Do meu pai veio ainda outro ensinamento, a paixão pela caça submarina e com isso o respeito pelo mundo subaquático. Aqui há muitos fatores que não controlamos e temos de nos saber adaptar debaixo de água diante do imprevisto. É um desafio importante para a vida, porque ficamos muito tempo no mar sem beber ou comer, sujeitos a vento e à pressão da corrente.
Lourenço tu assim dás cabo do coração da tua mãe.
Lourenço: Sim, sim, às vezes. (Ri) Passamos por muitas situações em que aprendemos os nossos limites e não podemos perder a cabeça e cometer um erro. Temos uma arma na mão, um arpão, e que mal usado pode ferir muito alguém, ou a nós próprios. Uma vez numa prova, a nossa bola de sinalização foi parar a uma rocha, esse foi um dia em que o mar estava com grande força a bater nas rochas, havia muitas ondas, mas eu tive de ir na mesma agarrar a boia de sinalização, porque sem ela era desclassificado e corria o risco de ficar no mar à deriva, o que poderia ser grave para mim. A verdade é que essa manobra fez-me ficar enrolado numa onda e ter algum embate nas rochas e perdi a arma porque com o impacto fiquei meio confuso. Mas estas situações ensinam-nos muito na vida, porque é preciso usar muito a cabeça.
Curiosa analogia esta do mar com a tua vida, no momento em que levas com uma onda que te vira os planos ao contrário.
Lourenço: Sabes, acho que é mesmo perfeita, porque aquilo que me aconteceu com o exame de matemática podia ter destruído por completo a minha autoestima, esses fatores levam a um blackout emocional. O mal é que não falamos abertamente destas nossas quebras, talvez por vergonha, e pode tornar-se em algo grave. Fazer uma atividade como esta, ajuda muito a controlar a cabeça e as emoções. O que me preocupa é quem não tem este contraponto...
Consegues comer os peixes da tua caça?
Lourenço: Têm dado ótimos petiscos e permitido ótimos encontros familiares. A pesca que fazemos tem grande ética à sua volta, levamos tudo muito a sério. E o maravilhoso sabor a mar em cada peixe que comemos?
Vamos sair de dentro de água e regressemos à Faculdade. No primeiro dia em que aqui entras e depois dessa turbulência toda de sensações como foi entrar aqui?
Lourenço: O primeiro dia foi muito estranho. Não era Faculdade que eu queria, não era o meu curso. Ia estar numas Jornadas de Introdução, rodeado de pessoas que estavam onde eu queria estar. (Ri) Mas de repente várias pessoas à minha volta, também em Nutrição, estavam na mesma situação que eu. Encontrei pessoas mais em baixo que eu e isso fez-me relativizar muito. Rapidamente fizemos um grupo de whatsapp e ficamos mais unidos.
Uniu-nos quase mais o sentimento comum de termos desejado outro destino e estarmos juntos, isto para alguns, claro. Essa foi a primeira particularidade, mas foi só no primeiro embate. Depois, estar nas Jornadas de Introdução ajudou-me em tudo. Se entrei contrariado e a pensar, "este não é o meu sítio", ao fim desse dia saí a pensar "Wow, tenho tudo a ver com isto". O discurso do Diretor (Fausto Pinto) tocou-me muito. Depois o discurso do João, o Presidente da AEFML também me comoveu. Essas duas participações marcaram-me muito… Então senti que não estava perdido nem sozinho. Reajustei alguma coisa que ao fim do dia me fez pensar, "eu posso ser um dia como estas duas pessoas, não vai ser amanhã, nem este ano, mas ao menos já estou cá e vai ser para o ano ou daqui a quatro". Nessa semana senti-me parte desta Faculdade. Valeu tão a pena, eu que nunca mudo a camisola, mudei-a pela primeira vez. Eu vou ficar cá!
E vais ficar exatamente no lugar em que estás ou vais fazer novo exame de matemática?
Lourenço: O exame vou fazer, só não sei com que nível de dedicação. Matemática é algo que adoro, mas ainda não sei se quero mudar já, ou se será só daqui a quatro anos. E eu sei que o tempo passa, mas eu sinto que não estou a perder esse tempo, pois agora percebo a importância da Nutrição, mesmo na área da Medicina. Falta-me uma resposta exata à pergunta, "devo fazer agora o exame, sim ou não?". Preciso de arrumar os fatores todos numa caixa e depois decidir. Sabes, o avô que eu perdi foi a minha inspiração para eu seguir Medicina, ele mostrou-me uma coisa, começou a ficar muito debilitado e a forma como era alimentado passou a ser um tema igualmente importante e na altura esse fator foi muito confuso para nós família. O meu avô estava em estado paliativo e íamos nós dar-lhe carne com batatas? Como, se não conseguia mastigar? E se os alimentos fossem salgados, o que lhe poderiam causar? Tudo isso me deu que pensar, porque eu não soube alimentar devidamente o meu avô, nenhum de nós da família tinha esse conhecimento. Percebi então que não dão o devido reconhecimento à Nutrição. Isso faz-me ponderar, atualmente, se não devo então tirar os dois cursos, já que a Nutrição vai enriquecer muito o curso de Medicina. Tudo vai depender da especialidade que eu queira escolher em Medicina.
E qual será?
Lourenço: Gosto muito de Cardiologia ou Pediatria e quer uma, quer outra fazem sentido ter a Nutrição como suporte de conhecimento. Eu acredito que me posso distinguir como alguém com um perfil pouco visto, não tanto pelas notas, mas pela forma como posso combinar as minhas valências. Acho que consigo transpor aquilo que já faço na vida pessoal para a parte académica. A ambivalência tende a ser valorizada e eu acho que posso marcar com essa diferença. É uma ideia que me acompanha sempre, fui escuteiro por cinco anos, agora faço caça submarina e toda essa experiência dá-me características importantes e que me podem distinguir na vida. Acho que cada um de nós deve procurar como faz a diferença diante das suas vocações.
Como está a tua gestão de expetativas agora que o mar acalmou um pouco em relação às tuas metas de vida?
Lourenço: É complicado mas já está tudo melhor. O facto é que sou um jovem de 18 anos que de repente está a pensar na vida a 12 anos e isso tem um peso que não quero que ganhe dimensão a mais. Só uma mudança de curso já é uma grande decisão. Claro que devo pensar nas coisas e saber o que decidir, mas há que ter calma e ir fazendo tudo com ponderação. Eu não estou a perder tempo, estou numa fase de aprendizagem e não sei se quero desistir deste tempo, sabes? É precisamente este meu caminho pode fazer a diferença.
O que é que te ajudava saber mais? Conhecer quem mais para te decidires?
Lourenço: Já ajudou muito ouvir médicos que tiraram os dois cursos, mas nenhum deles tirou este curso que estou a fazer agora. Era Dietética e Nutrição, mas não com este formato que tenho agora. Este curso dá-nos outras perspetivas para lá da clínica, o desporto, o marketing e a clínica, claro, mas é mais amplo. Também gostava de falar com outros médicos e ir assistir às suas consultas, por exemplo.
Se tivesses o condão de mexer no teu tempo e se pudesses recuar ao dia do teu exame de matemática, terias mudado alguma coisa?
Lourenço: (Silêncio longo) É difícil. (Sorri) Acho que não. Se tivesse dormido bem e tivesse tido o meu 19 ou 20, não estaria cá agora. E então não teria conhecido tanta gente e situações que me têm moldado como pessoa. Se eu mudasse não teria esta riqueza que tenho hoje. Eu que sou pouco de oscilar, mudei totalmente a minha perspetiva. Percebi que a vida não é linear e que isso é muito enriquecedor. Os caminhos tortuosos e as curvas têm muita piada depois. Só precisamos de saber andar por eles.
O Lourenço entrou no projeto "Missão País" onde, pela primeira vez, estiveram estudantes de Nutrição, o propósito é dedicar uma semana, para ir a um dos vários pontos do país, cuidar de pessoas idosas e ter alguns momentos de oração e reflexão. Nos últimos tempos voltou a abraçar um novo desafio, inscreveu-se para receber novos candidatos no Open Day que a FMUL lança a 5 de abril. Quer acolher como foi acolhido.
Num futuro próximo gostaria de ver maior sinergia de cadeiras gerais entre a Nutrição e Medicina e que se falasse mais do grupo que aspira alcançar Medicina, mesmo passando a valorizar muito a Nutrição. Novo defensor da licenciatura de Nutrição terminou a entrevista a apelar a uma maior integração dos grupos de Nutrição, pois afinal há muito mar comum a explorar.
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Joana Sousa
Equipa Editorial