Este mês uma das nossas entrevistas foi realizada à Professora Doutora Catarina Sousa Guerreiro. Sempre disponível e muito entusiasta, tem tido um percurso académico muito fluido com formação base na área da dietética e nutrição, depois um mestrado e um doutoramento nesta Faculdade, na área da nutrição clínica, em particular, na relação da nutrição e genes no cancro colorretal e doença inflamatória intestinal.
Entrou rapidamente no mundo académico, tendo sido convidada a lecionar enquanto realizava o mestrado aqui na FMUL, primeiro como assistente, depois como professora auxiliar, e por fim, em 2017, como professora associada, consequência da intenção do Professor Fausto Pinto de criar a licenciatura em Ciências da Nutrição (LCN), para a qual desenvolveram uma proposta para submeter à A3ES, que foi bem-sucedida. Paralelamente, continua a ter atividade clínica especialmente no apoio nutricional a doentes com patologia gastrointestinal e mais recentemente a doentes com patologia reumática.
Neste momento, está a iniciar-se o último semestre do quarto ano dos primeiros finalistas da Licenciatura de Ciências de Nutrição (LCN) e foram planeados estágios muito diversos. É exatamente neste ponto que começamos a conversa, discutindo o papel cada vez mais abrangente e crucial da nutrição em diferentes contextos.
Referiu que trabalha também com doenças reumáticas, não sabia que a nutrição tinha um papel nessa área…
C.S.G. – Durante muito tempo assumimos a alimentação como o simples ato de nos fornecer alimentos que visassem o alcance das doses diárias de proteínas, hidratos de carbono e lípidos, mas sabemos hoje que nutrição tem um potencial muito grande naquilo que é otimizar as diferentes funções do organismo. Existem milhões de substâncias nos alimentos que já sabemos que podem de alguma forma influenciar alguns processos metabólicos, nomeadamente os relacionados com a inflamação. É nesse sentido que a nutrição nas doenças inflamatórias, como, por exemplo, alguma doença reumática, parece estar a ganhar terreno. Partimos do princípio que pela dieta é possível fornecer mais ou menos antioxidantes, mais ou menos compostos inflamatórios, ou mesmo alterar a microbiota dos doentes, pelo que o impacto na nossa saúde decorrente daquilo que ingerimos parece ser tudo menos negligenciável.
E faz investigação nessas áreas?
C.S.G. – Vamos tentando encontrar tempo e financiamento para a realizar. Aqui na Faculdade estamos todos muito envolvidos, com grande dispêndio de tempo, no projeto da LCN, mas, com os estudantes do nosso mestrado em nutrição clínica, vamos tendo alguns recursos humanos, e por outro vamos tentando angariar fundos para a sua concretização nomeadamente na submissão a financiamentos de entidades como FCT, e esperamos que com a maturidade que temos de ir ganhando, consigamos chegar a bom porto.
Como tem sido este desafio dos 4 anos de licenciatura e que balanço faz?
C.S.G. – Tem sido altamente desafiante, mas o saldo parece-me positivo. Olhando para trás, nos últimos 5 anos, o primeiro ano foi de preparação e os 4 seguintes foram de implementação ano a ano de 14 novas unidades curriculares… penso que posso dizer que a aposta neste projeto até à data foi ganha. Obviamente era um projeto em que se anteviam obstáculos, mas no cômputo geral acho que tem corrido muitíssimo bem. Do ponto de vista da organização, e integração na FMUL e Universidade, foi relativamente simples, julgo que isso poderá estar relacionado com a importância cada vez mais dada ao conceito de multidisciplinaridade, e também a um maior reconhecimento da nutrição pela comunidade académica e científica. Mas é óbvio..., estamos numa faculdade com um curso de medicina muitíssimo reconhecido, com muitos e muitos anos de história, e com um reconhecimento público enorme, pelo que a nossa participação será sempre dimensionada à nossa escala. Mas a nossa maneira de olhar para isso não é com visão negativista, pelo contrário, “aproveitarmos” ao máximo a enorme experiência que todos detêm oriunda do curso de medicina, e depois tentaremos, com base nessa experiência e no nosso caminho, alavancar as nossas especificidades, fazendo o nosso próprio caminho. Em suma, desafiante, com enorme margem de progressão, o que o mantém como um projeto motivador.
Tem sentido sinergias e interesse?
C.S.G. – Sim, no geral sim, mas esse é um trabalho que temos todos de fazer. Acho que nalgumas situações existe ainda desconhecimento que desde há 4/5 anos existe um laboratório/departamento dentro da FMUL que só se dedica à nutrição. Às vezes deparamo-nos com docentes ou investigadores a procurarem o apoio de nutricionistas fora da FMUL. Nós queremos assumir-nos como a referência da nutrição dentro da Faculdade e da Universidade de Lisboa. Estamos cá para dar resposta aos desafios que nos colocarem. Tem sido muito gratificante receber o contacto de investigadores, médicos, académicos de áreas fora da nutrição a desafiarem-nos para projetos. Para mim esse é o caminho. Projetos pedagógicos, como mestrados, que no passado tinham de se socorrer de docentes externos à FMUL para lecionar aulas de nutrição, neste momento já não o fazem. Também as sinergias entre estudantes têm sido interessantes de se observar. Os nossos estudantes, na generalidade, são muito dinâmicos e, até à data, conseguiram interagir com os estudantes de medicina de forma muito eficaz. Outra alteração que se tem sentido de forma evidente é o interesse dos estudantes de MIM em procurarem mais conhecimentos sobre nutrição. Isso revela-se não só no interesse pela optativa de nutrição, mas também pelo número crescente de estudantes a realizarem o seu trabalho final de curso na área da nutrição. Acreditamos que é possível dar à nutrição um maior relevo no plano de estudos MIM, esse é um projeto em que gostaríamos muito de investir. Não faz sentido que o MIM da FMUL, a nível nacional, seja um dos que menos carga horária dedica à nutrição. Isto é algo que me parece que podemos melhorar, e muito... dessa forma ficaríamos mais perto daquilo que se faz nas grandes escolas médicas internacionais.
Há interesse na optativa?
C.S.G. – Sim, existe. O que esses alunos nos referem é que é uma área que lhes interessa, mas que têm défice na sua formação. Se pensarmos bem, a questão “o que posso comer?” quando perante um cancro e seus tratamentos, uma doença inflamatória, uma doença renal, doença cardiovascular… surge praticamente em todos os doentes. O médico deverá ter as noções básicas para saber responder. E responder de forma mais credível possível... o dr. Google não chega…. Para nós é altamente motivador saber que poderemos ter um papel ativo neste processo. Assim que tivermos mais estrutura dentro do nosso departamento, tentaremos criar soluções.
Em relação a este quarto ano, que trabalho está a ser feito?
C.S.G. – Neste último semestre do quarto ano, os alunos estarão dedicados apenas ao estágio. Na organização desta licenciatura adotamos o modelo em que permitimos aos estudantes escolher em que área(s) querem realizar o seu estágio. Por exemplo, um aluno que queira estagiar só na área clínica poderá fazê-lo (em um ou dois locais de estágio), mas se, por oposição, quer conhecer a realidade da nutrição clínica, mas também a da nutrição na indústria alimentar, pode também fazê-lo. Foi uma decisão, embora não coincidente com muitas das ofertas formativas nesta área, o que para nós faz muito sentido. Traduz-se por centrar no estudante a escolha da aquisição de determinados conhecimentos e competências em detrimento de outros. É um bocadinho disruptivo face ao ensino mais clássico, mas que para nós reflete muito a realidade atual. Para aqueles que têm dúvidas e gostavam de experienciar pelo menos dois cenários, poderão fazê-lo. Quem já tem muito definido o que quer fazer no seu futuro profissional, então vamos proporcionar-lhe uma experiência muito dirigida para aquilo que se espera que seja a sua realidade futura.
Temos a vantagem e o privilégio de as nossas turmas apresentarem um número reduzido de alunos, por consequência conseguimos um contacto muito próximo com cada um dos estudantes, o que nos faz conhecer bem aquilo que são as suas preferências e ambições. Foi isso que fizemos este ano e esperamos conseguir manter no futuro. No ano passado, durante o 2º semestre fizemos um inquérito aos estudantes, perguntando-lhes quais as 3 grandes áreas em que gostavam de realizar o estágio. Eu e a Professora Joana Sousa criámos um mapa de preferências de cada estudante. "O estudante X quer comunitária, o estudante Y quer marketing alimentar, aquele quer clínica...", e a partir daí começamos a contactar com parceiros. E aqui temos 2 vantagens. Temos a vantagem de sermos FMUL, o que nos abre muitas portas, primeiro pelo reconhecimento enquanto instituição e, por outro, já existem muitas parcerias e protocolos com as diferentes instituições. E a segunda vantagem prende-se com o facto de tanto eu como a Professora Joana termos um bom networking, fruto da experiência profissional anterior, o que nos facilita o contacto próximo com colegas. Talvez por estes dois motivos a esmagadora maioria dos nossos pedidos foram aceites. Teremos estágios na área clínica (ex: Hospital Santa Maria, Hospital Garcia de Orta, IPO, Fundação Champalimaud, Cuf, Hospital do Mar, Centro Neurológico Sénior, Hospital São Francisco Xavier), na área da indústria alimentar e farmacêutica (ex: Nestlé, Nutrícia, Fresenius), na área da saúde pública e comunitária (ex: Câmara de Sintra e Câmara de Lisboa), na área da investigação, (ex: IMM e FMH) e na área do desporto (ex: Ginásio Clube Português). São várias as opções, e existe ainda a hipótese de realizar estágio no estrangeiro. Umas das nossas estudantes já seguiu para Bruxelas para lá estagiar nos próximos 4 meses.
E tendências da nutrição? São diferentes do que era há uns anos?
C.S.G. – Eu terminei a minha licenciatura em 2002, e há 20 anos todos saímos do curso com expectativa de sermos nutricionistas em hospital. Hoje mantém-se o interesse em seguir esse caminho, daí o número grande de estágios em contexto clínico, mas existe agora interesse, por exemplo, em áreas como a indústria, que era algo que não acontecia no passado. O mesmo se passa com o desporto ou com a investigação. Não havia nutricionistas na indústria há 20 anos atrás, nem no desporto, e mesmo os nutricionistas de “bancada” a investigar e estudar metabolismos era algo muito circunscrito a alguns centros de investigação. Era tudo muito centrado na clínica. Hoje não temos tanto o “nutricionista direcionado para o tratamento da doença”, mas muito centrado na manutenção da saúde e prevenção da doença.
Mais focados no bem-estar em geral?
C.S.G. – Completamente. A nutrição tem um papel importante e coadjuvante na terapêutica e os nutricionistas que trabalham em hospital com doentes mais ou menos agudizados têm um papel importantíssimo naquilo que é, por exemplo, a nutrição artificial (entérica e parentérica), ou no acompanhamento de outras situações muito específicas, mas o foco tem de ser também (até mais...) na prevenção da doença. A má nutrição é um dos maiores fatores de risco das doenças crónicas não transmissíveis, e por isso é necessário atuar precocemente. Atualmente, há mais perceção de que a nutrição é fundamental na promoção da saúde, evitando a doença, e estamos hoje todos muito mais conscientes disso.
E áreas da nutrição que serão importantes no futuro?
C.S.G. – O papel da nutrição no contexto do envelhecimento talvez seja uma das áreas que pode ganhar bastante terreno no futuro. Depois, áreas que estamos sempre um bocadinho na expectativa de que deem um enorme boom são as relacionadas com as OMICS aplicadas à nutrição (genomics, proteomics, metabolomics, metagenomics, transcriptomics). Estas têm em vista a personalização da terapêutica nutricional, consoante as características de cada indivíduo, através de tecnologia muito avançada. Personalizar com base em dados genéticos, com base no microbioma, poderá ser um caminho, desde que a ciência consiga comprová-lo.
Sónia Teixeira
Equipa Editorial