- A conversa por detrás dos espelhos com OSIR
As primeiras pessoas paradas iam mantendo uma certa distância do muro e olhavam, cada uma tirando a sua conclusão do que via espelhado. Curioso como ninguém afirmava solidamente uma só leitura. Seria por não estarem habituadas a olharem-se para si próprias, refletidas num espelho que as conduz a um dos lugares mais movimentados da cidade de Lisboa?
Elemento forte e presente ao longo de um dos principais muros que vê chegar a Santa Maria milhares de doentes por dia, quem entrava pelo corredor central do edifício, olhava com curiosidade para um muro com pedaços de espelhos, como uma criança quando se vê refletida e passa para a frente e para trás para confirmar se é mesma ela.
Bruno Mendes explicaria precisamente que esse era o efeito pretendido, a contemplação e a auto-reflexão. A obra, que demorou 810 horas de um trabalho minucioso, foi um pedido de Daniel Ferro, Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, depois de uma ideia proposta pelo seu assessor de Comunicação, Pedro Marques. O mesmo Pedro que vira num dos muros externos do Hospital de Santa Maria uma instalação artística de OSIR. Ponto de partida para um primeiro contacto, Pedro Marques chegava assim à fala com o misterioso homem que só se mostra na medida do que cada um de nós se vê a si próprio.
A obra recém-inaugurada mostra um cientista, uma enfermeira, um médico, um bebé e dois possíveis utentes; há ainda um coração e um estetoscópio. O homem que se escreve a si próprio ao contrário, mais do que o RISO, quer provocar cada um perante si próprio, mas não sem homenagear todos os profissionais de saúde e utentes que viveram os últimos tempos de pandemia.
Para aplaudir a finalização da obra intitulada “Cuidar”, Daniel Ferro convidou as equipas médicas e os representantes do Centro Académico de Medicina de Lisboa, juntando assim Fausto Pinto, o Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Maria Mota, Diretora do iMM. Por gostar de se manter fora das ribaltas e preferir não se dar um rosto, OSIR fez-se representar por Bruno Mendes, responsável pelas declarações públicas e dupla enquanto artista plástico, assumindo-se como o project manager da obra “Reflecte o que há em ti”.
Mas quem é OSIR?
Falámos com Bruno Mendes e pedimos-lhe para saber mais deste homem que passa incógnito e que não quer retirar o foco às mensagens que passa para a sociedade, através das suas obras.
O percurso, a razão de ter chegado aqui, assim como a escolha do nome, foram o nosso ponto de partida.
Bruno Mendes: OSIR é um artista visual, nascido em 1983, no Distrito de Lisboa. O gosto pelo desenho e pela arte em geral surgiu muito cedo e ao longo dos anos essa relação foi crescendo e tornando-se mais sólida, até que passou a fazer parte do seu dia-a-dia. Neste novo projeto, em que trabalha com materiais improváveis, inexplorados, usa regras e figuras geométricas básicas, para criar as composições que apresenta nas suas obras O material em destaque é o espelho, não só por ser um material desafiante, mas principalmente pela sua simbologia. Os materiais que seleciona para compor as suas obras são maioritariamente reciclados, provenientes do desperdício, pois uma das mensagens mais importantes que pretende transmitir, é a importância da reutilização e sustentabilidade.
No caso do espelho, faz frequentemente a recolha em vários locais da cidade, quer seja em contentores de lixo, quer em contentores instalados nas indústrias vidreiras.
O projeto “Reflete o que há em ti” assenta num conceito cheio de simbolismo. As obras têm várias mensagens implícitas e explícitas, tendo como objetivo principal, a reflexão sobre o indivíduo, sobre os que o rodeiam e sobre o mundo que habita. “Vivemos num mundo em que os aparelhos tecnológicos estão cada vez mais ligados entre si, e em contrapartida, o ser humano, está cada vez mais desligado do mundo, dos seus princípios, dos seus valores, dos outros e de si mesmo."
Este é um projeto que pretende ainda que as pessoas, que se cruzam com as obras, as possam influenciar e transformar, passando a fazer parte integrante da própria arte, através do reflexo de si mesmas, das cores, texturas e formas. “Cada pessoa terá uma perceção diferente da mesma peça e terá a capacidade de a tornar única e sua”.
O nome é o contrário da palavra "riso" e é por si só um reflexo da sua forma de ver a vida.
Quando surge a ideia de aproveitar os espelhos partidos, espalhados pelo lixo, para criar arte?
OSIR: O ponto de partida surge após um momento de "rutura" na minha vida, o que me levou a refletir mais sobre mim, sobre os outros e sobre tudo o que me rodeia. A ideia de usar espelhos partidos tem a ver com a necessidade de reutilizar/reciclar os recursos existentes... é também uma mensagem importante, que pretendo transmitir através dos trabalhos realizados
O próprio Hospital contou que, foi depois de ver uma instalação do OSIR, num dos muros externos, decidiu desafiá-lo a criar uma nova obra de arte que homenageasse todos os que estiveram a viver neste Hospital a pandemia. Como decorreu o processo até ao momento em que o começou a planear?
OSIR: Essa outra instalação era também ela produzida a partir de espelhos reciclados. O processo costuma ser muito natural e orgânico. Inicialmente passa por reunir com o cliente, de forma a perceber o objetivo da obra, de seguida faço uma visita ao espaço (normalmente, fora de horas) onde passo algum tempo a "comunicar" com o espaço. A partir daí, começam a surgir imagens e ideias que se materializam em pequenos esboços e posteriormente na proposta final.
Como surgiu a escolha destas imagens em concreto?
OSIR: As imagens surgem de forma natural. A mensagem é sempre o mais importante, é para onde canalizo mais energia. Apesar da importância e da força que as imagens podem dar à mensagem, acabam por ser secundárias, são apenas um veículo para transmitir a mensagem pretendida.
Como é que um artista consegue criar e pôr alma em algo que é uma “encomenda”? Qual é o processo?
OSIR: Uma encomenda é apenas um novo desafio... e quanto mais exigente, maior é a satisfação durante o processo. Quando um artista é contactado, é sinal que confiam no seu trabalho, desta forma existe sempre liberdade para o seu desenvolvimento. Ao criar qualquer tipo de obra, seja encomenda ou não... a proposta e a sua materialização é sempre influenciada pela vivência... pelos estímulos... pela visão... desta forma a alma do artista estará sempre presente no produto final.
Foram 810 horas de trabalho para criar este muro de espelhos. Conte-nos como foi o processo, que cuidados há a ter em conta uma vez que falamos de um material que corta. Quantos espelhos teremos nós aqui no muro?
OSIR: A produção da obra durou cerca de 810 horas, a instalação durou cerca de 115 horas, e ainda podemos somar mais algumas na procura e recolha dos espelhos pela cidade. No manuseamento destes materiais todos os cuidados são poucos, e de quando em vez, existem pequenos incidentes... nada de grave. Usamos materiais de proteção e quando estamos a preparar a obra, temos o cuidado de tirar "o fio de corte", e no final da instalação ainda colocamos uma massa para nivelar a superfície do espelho, reduzindo assim 99% das hipóteses de existirem incidentes com quem se cruza com a obra.
Não contabilizamos o nº de espelhos usados em cada obra, uma vez que usamos retalhos de espelhos, seria impossível saber o tamanho original do espelho e por sua vez quantos espelhos teriam sido usados.
Escreveu uma carta de agradecimento e enviou-a pelo Bruno, a justificar a razão desta obra. A reflexão visual e a da consciência. Qual é a reflexão que faz quando se vê refletido num espelho?
OSIR: Costumo fazer reflexões, mesmo sem ser em frente a um espelho, contudo, em frente a um espelho tudo se torna mais intenso... mais real...
Sinto que nos dias que correm, a Humanidade vive cada vez mais sob uma pressão induzida... sem tempo, sem reflexos, sem alma... a lei do mais forte sobrepõe-se aos valores base e não se olha a meios para atingir os fins. Seria hipócrita se dissesse que não faço parte dessa mesma humanidade... Ainda que tenha presente os valores e princípios que defendo, luto diariamente para me tornar um ser humano melhor, mais justo, mais generoso... mais humano.
Há algum processo de desapego para se libertar uma obra, depois de ter sido tão planeada e desejada, e de a entregar nas mãos do público, expostas a tudo, correndo o risco até de serem estragadas?
OSIR: Nunca vejo uma obra como sendo verdadeiramente minha... faz parte de mim, tem uma parte mim, mas não é minha… é de todos os que se cruzam com ela, é de todos os que refletem nela e sobre ela... e é com essa premissa que ela é pensada e materializada.
Em relação ao envelhecimento, degradação ou destruição da obra, é apenas uma consequência da sua exposição. Prefiro pensar que a obra se torna mais rica à medida que os elementos a vão modificando... é fruto do tempo, fruto das suas vivências, do seu amadurecimento... como se cada "mazela" contasse uma história.
O facto de não querer dar a cara pelas suas obras, de não aparecer e de se fazer representar por elementos da sua equipa é uma mensagem social, ou pode funcionar também como uma nova estratégia de Marketing?
OSIR: Não tem nada a ver com Marketing... não procuro fama... o importante são as mensagens e o que as obras representam. Inevitavelmente, o facto de ser conhecido vai limitar mais o meu trabalho, as minhas escolhas, os locais onde faço as instalações ilegalmente, etc... ao manter o anonimato, posso ser mais genuíno e espontâneo, sem me condicionar a mim, nem os que me rodeiam.
“Obrigada a todos os que vieram salvar outros e deixaram a suas famílias para estar aqui” – Bruno Mendes
“Muitos sonhos foram cancelados e muitos abraços adiados. Devemos refletir sobre nós e o outro”. Osir
Agradecimento especial: ao Bruno por toda a simpatia e forma ágil como me permitiu receber o feedback real do OSIR.
Ao OSIR por ter aceite conversar à distância e responder às pequenas provocações de quem o quer apenas melhor descodificar.
Obrigada a ambos!
Joana Sousa
Equipa Editorial