Se entrasse hoje nesta sala, talvez não acreditasse que um dia este foi o seu lugar.
Janelas novas e que já não abanam com o vento, cadeirões em pilha, cobertos com um plástico forte e opaco, muito pó e uma nova janela a rasgar a parede do canto, agora sim com vista para o seu estádio do coração, o Sporting. No chão mantém-se a campainha antiga, com um botão junto aos pés da mesa, que servia para chamar a secretária à sala. No corredor já se amontoam os velhos sofás em tons rosa que sempre foram conhecidos por habitarem aquele espaço amplo.
Descobri a Luísa, a sua assistente de longos anos, depois de procurar a melhor solução para chegar à sua sala, agora entregue nas mãos do Hospital para obras totais.
Perdida no 8º piso desafiei o assessor de Comunicação do Conselho de Administração do Hospital para me fazer chegar à dita obra que me impediria de o rever pela última vez, junto à janela de sempre onde as andorinhas eram sempre o primeiro mote das nossas conversas. Entre o Pedro e eu houve o despique saudável de regatear se a obra era da gestão do Hospital, ou da Faculdade. As duas entidades sempre coabitaram assim, lado a lado, tantas vezes fundidas num espaço só. A proximidade de espaços é o que nos motiva a ambos.
Na passagem turbulenta de uma manhã comum dentro de um gigante hospital, passamos pelo Neurogirurgião José Miguens, o sucessor de João Lobo Antunes na Neurocirurgia. Afável e solícito gostou da ideia de irmos espreitar as obras do piso 6 da Neurologia e avisou de imediato, “olhem que o Professor está mesmo de saída”, enquanto falávamos baixinho, pois o gabinete onde se encontrava temporariamente emprestado, estava colado a nós.
Descemos com a Luísa para ver as obras. A sua sala, o átrio comum e o corredor antigo de madeira que sempre rangeu em plena luz do dia. O relógio antigo pendurado ainda lá está. “E as cadeiras de madeira Luísa e a fotografia com a equipa clínica do pai Lobo Antunes?”, perguntava eu entre a tristeza das memórias e a expetativa de ver o que dali nascerá.
Fotografei a sala onde sempre me acolheu, com a promessa que não faria surpresas ao Professor. Não sem o validar com ele antes.
Neste mês que agora termina, encerrou também um dos percursos académicos e hospitalares mais notáveis que a história regista. O Professor Catedrático de Neurologia e Diretor da mesma área de Santa Maria, José Ferro, despedia-se da casa onde entrou em 1972 para exercer a sua especialidade.
No piso 7 do Hospital, na sala de aula onde se debatem tantos casos, José Ferro despediu-se das suas equipas clínicas através de uma apresentação simbólica, condensando os últimos 40 anos entre um antes e o depois. Da mudança de paradigma dos fármacos, à escassez dos exames médicos e sua atual inovação. Se o Hospital sofreu poucas alterações estruturais nestes tantos anos, já a sua cidade passou das várias construções ilegais, para grandes condomínios vistosos. Na altura do estatuto do doente, nos idos anos de 68 e das vitórias clínicas mais evidentes, hoje o maior contraste de todos é o da interação entre médico e doente, que deixou de ser cara a cara, para ter um computador a intermediar o tempo e a história clínica. “No entanto a empatia e a compaixão são as mesmas”, afirmava enquanto ia passando em slides breves linhas a resumir tudo o que foi a sua vida.
O mesmo homem que quis ser Engenheiro Químico e depois Psiquiatra acabaria, já na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, por se dedicar a trabalhar em investigação, na área da Anatomia. Já como Monitor aprendeu habilmente a dissecar carótidas, algo que retomaria tempos depois, mas desta vez associada aos acidentes vasculares cerebrais.
Em novembro de 1972, José Ferro decidiu bater à porta do Laboratório de António Damásio e apresentar-se para trabalhar. Essa relação permitiu-lhe contribuir para ajudar nos trabalhos das teses de Damásio e Castro Caldas. Seria precisamente sobre as correlações da Tomografia Computorizada com a Neurologia do Comportamento que desenvolveria a sua própria tese.
Fez o internato em Santa Maria e seguiu depois para o Alentejo, ficando responsável pela saúde escolar de Arraiolos, onde fez serviço médico à periferia.
Regressado do Alentejo, voltaria ao internato da Neurologia em Santa Maria.
Ficou na Faculdade de Medicina onde foi contratado como Assistente e ainda por uns tempos a trabalhar na área da Neurologia do comportamento.
Com o tempo passou a dedicar-se à Doença Vascular Cerebral, numa altura em que o país pouco ou nada tinha sobre o tema. Muito conhecido no meio vascular cerebral europeu e mundial dedicou grande foco às doenças das veias do cérebro. Outro foco da sua investigação tem sido nos últimos anos as consequências neuropsiquiátricas dos AVCs.
Homem de convicções fortes e pensamento mordaz, envolveu-se na política. Foi dirigente académico, representante dos estudantes no Conselho Diretivo, nos últimos anos de curso de Medicina, e esteve ainda envolvido na Direção da Associação de Estudantes.
Muito menos interventivo e mais facilmente fintado pelos afetos, o Professor recebeu um forte aplauso de tantos quanto o admiram intelectualmente. As declarações de amizade não passariam, no entanto, despercebidas para um homem que sempre defendeu ser essencialmente regido pela razão.
Uma bola do Sporting assinada e uma moldura com a equipa toda reunida seriam apenas mais duas manifestações de antecipada saudade.
Saiu do seu Edifício no dia 21 de outubro, exatamente um dia antes de completar 70 anos de vida.
Saiu sem comoção visível para alguns mais próximos que comentavam na sala agora vazia, “pensei que se ia emocionar, mas aguentou muito bem e sem quebrar”. Em público falou com algum humor e terminou a sua última aula clínica a dizer, “e pronto, é isto, já terminou”, sem espaço para que alguém descontrolasse a razão. Mas o que não disse é que foi discretamente quebrando em cada doente que viu pela última vez e se despediu, na última reunião clínica e nas pastas que foi delegando. Não disse que se tornou menos rígido porque a vida o ensinou a amolecer o coração, sem que isso significasse ser fraco.
Saiu sem se despedir do seu gabinete que um dia serviu para as nossas mini tertúlias sobre a Escola, o Hospital e a vida e o voo dos pássaros. Saiu sem o último café e a pôr-me em sentido, “ponha lá a máscara que já bebeu o seu café há muito tempo”.
Mas antes de sair deixou um legado, aquele que continuará a honrar os seus princípios, compromissos e ética.
Despediu-se de nós o clínico. O Professor fará a sua despedida à academia no dia 14 de dezembro, no Grande Auditório Lobo Antunes.
E pronto Professor, é isto. Porque o resto, se me permite, eu fui quebrando devagar e sem ninguém perceber.
Obrigada!
Joana Sousa
Equipa Editorial