Fácil prender-nos a atenção se lermos os relatos que vai dando, através de artigos que escreve nas suas páginas pessoais, ou para o jornal Observador.
É um médico de alma, com espírito de missão para um sentido comum, cuidar dos outros. Não é em vão que cita Tchekhov, seu colega médico, porque assina o seu caminho com a mesma premissa de vida, “a sua mulher legítima é a Medicina e a amante a Literatura”.
Acho que nunca o disse publicamente e peco por isso: Gosto muito de ser médico, gosto muito de ser médico no Serviço Nacional de Saúde e gosto muito de ser médico no Hospital de Santa Maria (a minha casa, sempre a foi, sempre a será).
De todas as parcas recordações fotográficas dos últimos 11 meses guardo esta, da primeira vaga (ainda em enfermaria), com carinho.
Por tudo o que nos deram os doentes e por tudo quanto nos deu este hospital creio poder falar praticamente no colectivo: podemos todos cair, mas os de cá amparam-vos a queda e caem convosco.
Estamos cá, estaremos sempre cá até que o último coração deixe de bater e que, por fim, o silêncio cubra um gigante que teimará sempre em agigantar-se cada vez mais.
Desde 1953 que assim é. Há-de ser até ao fim.
Firmes. - Miguel Esperança Martins
Entre horários turbulentos e cansaço que não espelha no olhar, reserva-me um dos seus poucos momentos de folga para me dar esta entrevista. É domingo de manhã, adia-se o almoço para que me possa dar parte do seu escasso tempo. Depois reservará poucas horas à namorada Sofia, também ela médica, e às 20h estará a entrar na urgência para mais um longo turno onde tentará dar o seu melhor para prender à vida os doentes com Covid-19 que são por natureza instáveis clinicamente.
Miguel Maria Esperança Martins é filho desta casa que se chama Centro Académico de Medicina de Lisboa (CAML), cumpriu as paragens em todos os pontos-chave de um monopólio que o levará à riqueza intelectual e maior desenvolvimento humano.
Do ano 10/16 da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, saiu do CAML apenas um ano para fazer o internato de ano comum no Hospital Beatriz Ângelo, voltando logo de seguida para o Hospital de Santa Maria onde atualmente cumpre o 3º ano de internato em Oncologia. Desde janeiro deste ano que começou a escalada para o prédio completo, fazer investigação no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), com Sérgio Dias (Professor e Investigador Principal do iMM) e Luís Costa (Professor, Diretor do Serviço de Oncologia do HSM e Investigador Principal do iMM) . O seu foco de investigação serão os sarcomas, tumores menos comuns raros, que afetam acometem ossos e tecidos moles. Cita Luís Costa para justificar na sua vida a importância da investigação “na vida o maior tesouro de que dispomos é a curiosidade intelectual”.
Muito bem caro Dr. Miguel, mas de onde lhe vem tempo para tudo e tamanha sede de absorver mais algum saber? Penso. Nada na vida lhe surgiu ao acaso, ou sem trabalho meticuloso. Ainda nos tempos de Faculdade, entrou no GAPIC para desenvolver os seus primeiros projetos de investigação científica. Foi aí que aprendeu a conciliar várias tarefas em simultâneo, sentido espartano, assumiu, já que assumia igualmente o papel de monitor de Anatomia e Neuroanatomia.
Muito antes de ser médico, o Miguel, nascido em São Sebastião da Pedreira, e filho de um pai advogado e com uma mãe médica, já vibrava curiosidade em todos os seus sentidos. Detective, era aquilo que desejava para o seu percurso que seria certamente promissor. Sempre adorou ler para alcançar novos mundos, tal como os pais que lhe passaram pelo sangue a matriz do rigor e da reconciliação entre o Mundo e o Homem. Criado e formado por Jesuítas, fala com o mesmo brilho de gratidão da sua Faculdade, como do São João de Brito, colégio onde estudou até ao fim. “Educado para servir, Joana, foi isso que fui e sou isso que sou” , não exagera nas palavras, nem na ênfase que lhes dá.
As palavras… essas que usa quase como uma criança que brinca livremente e cria mil enredos, mas já retomamos mais adiante essa outra paixão.
Crente que está na vida para servir e futuro detective de investigação, foi como lhe começou o caminho. Mistura de conceitos? Não, cabe-lhe tudo na mesma bagagem. O primeiro grande tema a que dedicou a sua curiosidade, no 11º ano de escolaridade, foi a compreensão da utilidade terapêutica das células estaminais. Nessa altura sentiu as ideias a fervilhar na cabeça, questionou a ciência, e explorou as bases das suas convicções de base católica. Descreve, na biblioteca da antiga sede da revista Brotéria , uma longa conversa com um dos grandes mentores do seu pensamento e carácter, o Padre e Professor Luis Archer (estudioso da Genética Molecular , Humanidades, Filosofia e Teologia, entrou na Companhia de Jesus e anos mais tarde seria ordenado Sacerdote).
Ao desafio que lhe lanço para que me explique como pode a Ciência coabitar no mesmo espaço de Deus como o criador, sorri e afirma calmamente que é tolerante a todos os códigos e expressões do outro, mas a verdade é que para ele, “a complexidade celular, molecular, genética e epigenética em todos os seus cambiantes não é fruto do acaso. O que dá mais sabor à ciência é o toque humano, tocado pelo divino”.
Excluída que estava a via de ser detective de profissão , encarou que seria detective celular e foi assim que a investigação o acompanhou no crescimento e com especial particularidade.
Como Alberto Caeiro, também Miguel Esperança Martins deixou que “todas as pequenas coisas o maravilhassem”, criar novas questões e preencher interstícios era missão de quem queria “destapar o véu da ignorância” com novas pistas, ou razões.
Será só uma Escola que forma assim o caminho de alguém? Por certo que não. Para além dos pais, há ainda os avós. Os avôs que já partiram deram-lhe, no entanto, herança rica, o gosto de ser um razoável contador de histórias por influência do avô paterno (advogado), e a ética e rigor, carimbos do avô materno (médico internista) . Foi no somatório do que recebeu e dos afetos que nunca faltaram que diz ter encontrado a verdadeira influência na vida e as suas grandes amizades da vida, os pais, avós e a Sofia.
Tocar os outros e servi-los é, como tal, o papel que melhor desempenha e pode fazê-lo de inúmeras e diversas formas, quando viaja e reflete sobre o que vê e quem vê, quando fala outras línguas, para estar mais perto do outro, ou quando entra todos os dias no seu hospital do coração, o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa, e vai para o internamento tratar de doentes que estão infetados pelo SARS-CoV-2.
Até chegar ao seu atual 3º ano de internato em Oncologia, Miguel Esperança Martins passou por Londres em dois estágios diferentes, no St George’s Hospital, em Cirurgia Colorretal e posteriormente no Imperial College (St Mary’s Hospital), em Cirurgia Esofago-Gastro-Duodenal; pelo meio participou ainda num estágio no Rio de Janeiro, em Cardiologia.
O que o moveu, o que o move todos os dias é entrar no mundo dos outros, olhá-los a fundo e sentir como os pode tocar, melhorar o seu destino, ou agarrá-los à vida.
Vida, é o que o Miguel Esperança Martins dá todos os dias.
Estando em Oncologia como é que vem parar a uma área de doentes com covid-19?
Miguel Esperança Martins: O internato de Oncologia inclui 21 meses de estágio em Medicina Interna . Estava precisamente nesse período com uma pessoa a quem devo muito e que muito me ensinou, a Dra Patrícia Howell Monteiro, da Medicina 2C, e na altura foi-nos lançado o repto de abordarmos e tratarmos os doentes recém-diagnosticados com infeção por SARS-CoV-2. A Dra. Patrícia reuniu a equipa e assumimos esse mesmo compromisso . Assim foi. No período de março a setembro, do ano passado, cumpri parte do meu estágio de Medicina Interna, trabalhando em permanência em unidades de isolamento e internamento de doentes com infecção por SARS-CoV-2 . Cumpri igualmente parte do meu período de estágio no serviço de Medicina Intensiva, de outubro a dezembro, também em unidades dedicadas a doentes COVID-19 . Regressei em janeiro ao meu Serviço de Oncologia, mas dado o agravamento, do ponto de vista epidemiológico, do estado da infeção em Portugal e mediante a pressão assistencial que foi colocada no nosso centro hospitalar, foi necessária a mobilização de um interno de Oncologia, no decorrer do mês de fevereiro, para apoio nas enfermarias repletas de novos doentes COVID-19 . Sou eu que actualmente integro a equipa do serviço de doenças infeciosas sector C (chefiado pelo Dr. Armando Braz e pela Dra. Maria João Gomes) e presto apoio aos 24 doentes com infeção por SARS-CoV-2. Portanto, este meu percurso começou em março do ano passado e persiste em fevereiro deste ano.
O que é que se sente diante de um cenário desses?
Miguel Esperança Martins: Foi uma mescla de sentimentos. Senti que estava a ser chamado para aquilo para que fui educado, para aquilo para que me formei e, acima de tudo, para servir . Quando percebemos que somos necessários, sentimo-nos sempre imbuídos de um espírito de missão e foi esse mesmo espírito que me preencheu quando tudo começou. Depois senti também, inegavelmente, algum receio, porque, à data, lidámos com um agente que desconhecíamos praticamente por completo. Tínhamos uma ideia relativamente imprecisa e vaga com base nos relatos de Wuhan (China) , mas as diferentes etapas da história natural da doença eram relativamente mal caracterizadas , o potencial catastrófico deste novo agente era desconhecido, o tipo de tropismo tecidual ou orgânico que o vírus poderia apresentar havia sido parcamente caracterizado, e apesar de todo o material e proteções, a transmissibilidade não estava apropriadamente explorada . Externamente a esta ambivalência, senti-me entusiasmado, porque tive a oportunidade e o privilégio de lidar com algo que, nas últimas décadas, gerações inteiras de médicos não lidaram, uma patologia nova, inteiramente por explorar . A possibilidade de lidar com uma pandemia é intelectualmente muito estimulante. Creio seriamente que na minha carreira futura não terei a oportunidade de voltar a lidar com um agente completamente desconhecido e com uma doença absolutamente inexplorada . Assistir à explosão do conhecimento e progresso científico, ser parte desse processo, integrar uma comunidade global que luta pela compreensão de mecanismos da doença e proposição de potenciais alvos terapêuticos é um momento muito estimulante.
Como são as rotinas de um médico que vai tratar de doentes covid?
Miguel Esperança Martins: Quando entramos no hospital principiamos sempre por uma pequena reunião de discussão dos doentes . É sempre feita uma revisão completa e extensa das vigilâncias dos doentes da noite passada e uma resenha das principais intercorrências relevantes das últimas 24 horas. Há determinados aspetos em que nos focamos mais particularmente, como o padrão ventilatório do doente, ou seja, o grau de conforto ventilatório manifestado por capacidade de tolerância a esforços, frequência respiratória, uso de músculos acessórios da respiração, coloração azulada de pele e mucosas. Depois dessa revisão definimos quais os doentes que abordaremos em primeiro lugar e que têm de ser observados mal entramos . Passamos depois para o ritual de desinfecção e equipamento. Fazemos uma lavagem das mãos, vestimos o fato, há quem o prefira vestir por completo, ou apenas uma das batas, a que se segue a colocação da proteção de pés, a touca, cógula quando justificável, depois a proteção ocular, composta por óculos ou viseira, e por fim as luvas. Tenho por hábito usar sempre dois pares de luvas. Recolhemos todo o material necessário para o primeiro doente que vamos ver e, se posteriormente precisarmos de algum outro instrumento ou material, vamos solicitando aquilo de que necessitamos do lado de dentro, a zona vermelha. Vistos os casos mais graves, tenho sempre por hábito dar uma volta rápida por todos os doentes para assegurar como se encontram.
E como é que se lida emocionalmente com doentes com quadros clínicos mais graves?
Miguel Esperança Martins: Aí posso dizer-lhe que sobressai aquilo que mais de médico há em mim. Se tenho perante mim um doente que com elevada probabilidade de falência ventilatória aguda a breve trecho, é claro que tenho de atuar com um outro grau de prontidão e precisão. Tenho rapidamente, embora com toda a tranquilidade, de explicar ao doente, muito direta e claramente, o que vai acontecer. E aquilo que se explica, quando é necessário e o doente tem capacidade de compreensão íntegra, é que necessitaremos de o sedar e de lhe fazer passar um tubo orotraqueal, salientando que o procedimento será indolor e absolutamente crucial para que possa ultrapassar a fase mais crítica da sua doença.
Repare, um médico pode ferver sozinho, mas ferve sempre isolado. Para o outro, para o exterior tem o imperativo de transparecer calma, tranquilidade e segurança.
Aquilo que mais me impressionou, pela extraordinária densidade emocional e humana, foram as últimas chamadas telefónicas antes de uma entubação. Testemunhei algumas e há vozes e sons que me ecoarão sempre na mente. Já assisti a várias, com tons e conteúdos variados. Escreverei uma crónica extensa relatando isso mesmo. Não me esqueço da última chamada de um doente jovem para o pai. Foi extraordinariamente breve dada a dispneia e fadiga do doente, mas todo o carinho e amor coube em meia dúzia de palavras. Depois de explicarmos ao pai a gravidade da situação clínica e depois de passado o telefone ao doente, a única coisa que este conseguiu articular foi "até já, um beijinho". Já viu o que é despedir-se do seu pai deste modo? O quão contranatura é isto? Há outro caso em que fui eu que estabeleci a ligação para a mulher e para os filhos do doente. Expus a gravidade clínica da situação à mulher do doente e passei o telefone a quem, por entre duas ou três frases entrecortadas, arranjou força para chorar e expressar uma mensagem para a eternidade dos seus. Curiosamente, passadas duas semanas, o doente retornou da sua estadia no serviço de Medicina Intensiva e ao retornar ao serviço de Medicina Interna quem o recebe de volta sou eu. Ao entrar no quarto, o doente fixou-me brevemente e, apesar de ainda animado pelo delirium hipercinético, apontou e repetiu freneticamente “Você disse-me que ia correr bem”. Não me esqueço disso. Estes momentos, mais do que pelo dever e ética médica, são momentos de pura humanidade, de união a um semelhante nosso num momento de máxima fragilidade e receio. Não tenha dúvida que isto forma carácter e dota qualquer um de uma humildade franca e de um respeito extraordinário pelo que não controlamos em absoluto. Acredite que, ao longo deste ano, mesmo não sendo eu intensivista, já vi e vivi situações incríveis e acredite que se entrevistasse os meus colegas internistas, anestesistas e intensivistas, que são quem está mais frequentemente com o doente nestes momentos, teria seguramente material para vários compêndios. São seres humanos que estão ali e a História fez-se, faz-se e far-se-á de seres humanos.
Mas como em qualquer história humana às vezes corre mal...
Miguel Esperança Martins: Sim, naturalmente...
E portanto enquanto médicos nunca quebram em público…
Miguel Esperança Martins: Idealmente não. Na prática é virtualmente impossível, porque os doentes que nos circundam na sua prática observam-nos, sabem que do lado de cá há outros seres humanos que habitam batas, luvas e laringoscópios. E tendencialmente todos nós, enquanto invólucros de carbono povoados por emoções, nos ressentimentos emocionalmente, como é óbvio. No momento podemos bloquear o florescer da emoção e manter-nos racionalmente íntegros. Tentamos manter-nos neutros e racionais, mas acabamos sempre por reflectir (voluntária ou involuntariamente) acerca daquilo com que a vida nos presenteia. Quer queiramos, quer não. Todos nós temos o nosso cemitério, todos nós somos assaltados por certas ideias e reflexões. Sempre!
O Miguel nunca sente medo por estar tão perto deste vírus?
Miguel Esperança Martins: O receio existe sempre. Negá-lo é irreal. No meu caso, o meu principal receio passa por inadvertidamente contagiar aqueles que me são mais próximos, originando-lhes um quadro tão catastrófico como aqueles com que lido no hospital. No momento em que temos perante nós um doente, a preocupação connosco, regra geral, desliga-se. Estamos formatados para ajudar o próximo, para servir e, como tal, nosso instinto de sobrevivência é posto ao serviço do outro. A nossa preocupação principal passa por salvar e preservar a vida da pessoa de quem estamos a tratar e que a nós se entrega. Se me preocupo comigo genericamente? Sim, genericamente, mas a minha principal preocupação é o doente que tenho à frente, a minha família e a minha namorada. Sabe que acho que nem eu, nem os meus colegas estamos muito preocupados com aquilo que nos pode acontecer naquela circunstância. Claro que não somos inconscientes. Entramos devidamente equipados, mas a nossa preocupação, e acho que é quase universal e transversal a todos com quem trabalhei neste ano, é salvar o doente naquele momento.
Enquanto médico que está em pleno cenário de calamidade, consegue dizer-me se o perfil dos doentes tem vindo a mudar ao longo do tempo?
Miguel Esperança Martins: Têm sido tempos diferentes da primeira vaga. Têm sido tempos diferentes da segunda vaga, também. Ou seja, nós sempre tivemos doentes muito graves, altamente complexos, porque somos um centro hospitalar terciário, o maior hospital do país e, como tal, recebemos doentes com todo o espectro de gravidade de doença. Aquilo que denoto nas últimas semanas é a maior proporção de doentes com doença moderada a grave que nos têm procurado e, no outro prato da balança, a finitude dos recursos humanos disponíveis para a resposta a esta autêntica avalanche. Nós somos praticamente os mesmos que aqui estão desde março do ano passado. Claro que se foram sempre juntando mais pessoas, e aqui permita-me que fale da minha realidade e do meu hospital. O espírito de entreajuda, de um serviço ao outro, tem sido absolutamente extraordinário. Repare, neste momento trabalho numa unidade de isolamento com 4 internos de cirurgia geral e 2 internos de otorrinolaringologia, especialidades eminentemente cirúrgicas, que não lidam habitualmente com doentes com patologia respiratória aguda. Garanto-lhe que estão a dar o melhor de si para conseguir dar a melhor resposta possível neste contexto. Temos tido uma capacidade de união extraordinária! Esforçamo-nos, damos o nosso melhor, cumprimos horas infindáveis. Que fique aqui dito. Andamos num ritmo extraordinário há um ano. No entanto, os recursos humanos são, de facto, finitos e a calamidade que se abateu sobre o SNS assumiu contornos estratosféricos. Por mais refinada que seja a resposta que tentemos dar, e permita-me fazer uma vénia aos serviços de Medicina Interna (em particular à “minha” Medicina 2) e Doenças Infecciosas, que têm conseguido abrir enfermarias a uma velocidade estonteante, é díficl prestar cuidados de máxima qualidade a tantos doentes em simultâneo. O mesmo se aplica ao Serviço de Medicina Intensiva que tem feito uma expansão extraordinária, duplicando a capacidade de camas em poucos meses. Dou-lhe um outro exemplo, o “covidário”, a divisão da urgência que temos lá fora. Esse é também um serviço onde se operam pequenos milagres. As equipas de urgência têm estado a trabalhar a 200% ou 300%, a lidar com doentes incrivelmente complexos, cumprindo períodos infindáveis naquele espaço. Faz-se o impossível até que se consigam inventar, e a palavra é mesmo esta, mais vagas na estrutura hospitalar. Todos os profissionais do CHULN estão cá para dar resposta a esta situação. Aquilo que escrevi na semana passada reforça isto que lhe digo, este gigante está cá desde 1953 e há de cá estar até ao fim.
A sensação que nos passa é que é como se vivessem, nos hospitais, dentro de um cenário de guerra…
Miguel Esperança Martins: Provavelmente sim, mas o nosso objetivo é precisamente contrariar essa perceção. Claro que estamos numa prática limite de medicina de catástrofe, como negar? Independentemente desse cenário, a verdade é que todos os profissionais têm feito um esforço suplementar para não mostrar isso aos doentes que por nós são assistidos. Veja novamente o caso do "covidário". Apesar do significativo número de doentes sobre ventilação não invasiva, ou com aportes de oxigénio muito significativos, a verdade é que os doentes estão acordados, ouvem-nos, vêem-nos. Temos bem presente a necessidade de não passar uma imagem de caos, desorganização ou pânico. Principalmente pretendemos não transparecer a ideia de que estamos a fazer escolhas, quando estas só são feitas no limite. Os doentes não podem ter esta imagem dos cuidados de sáude, não só os que estão dentro do covidário, como os que estão à espera, como os que estão em casa. A mensagem de gestão da situação tem de passar pelo garante da tranquilidade possível, mesmo que ela não exista em pleno. A medicina de guerra mostra-nos que há escolhas e decisões que são tomadas em situações limite. Se eu lhe dissesse que isto não é verdade, estaria a mentir. Agora, nos turnos que fiz, quer na urgência central, quer na enfermaria de Medicina Interna, quer no serviço de Medicina Intensiva, nenhum doente deixou de ser devidamente assistido, abordado e confortado independentemente da enorme pressão a que estamos sujeitos.
E como é que fica um médico que decide uma vida em detrimento de outra?
Miguel Esperança Martins: Felizmente desse ponto de vista, do que me foi dado a ver, tudo tem sido pautado por uma racionalidade científica, porém justa e realista. As decisões limite em relação aos doentes são sempre tidas em equipa. Existe uma partilha e comunhão de posições entre os elementos que compõem cada equipa. Se o doente for candidato a medidas adicionais de suporte de órgão e necessidade de permanência numa unidade de cuidados intensivos, é sempre discutido com o Serviço de Medicina Intensiva. Claro que no fim do dia, quando toda a adrenalina passa, quando tudo o que no imediato nos ocupa a cabeça se desvanece e a poeira assenta, pensamos e refletimos sobre as situações com as quais lidamos. Isso é normal. Neste momento quem chefia equipas de Medicina Interna, Doenças Infeciosas ou de Medicina Intensiva, tem seguramente muito em que pensar. Habitualmente após 30 ou 40 horas de serviço ininterrupto. É bonito e importante respeitar isso.
(o silêncio de ambos é longo aqui)
Como estará a cabeça do Miguel quando esta pandemia passar, pelo menos desta forma avassaladora?
Miguel Esperança Martins: Vou ter a minha cabeça extraordinariamente ocupada, sabe? Lidaremos todos com os efeitos colaterais desta pandemia. Eu, especificamente, na minha área da Oncologia Médica. Temos garantido o seguimento de todos os doentes que se encontram a fazer terapêutica antineoplásica sistémica ativa, e aqui tenho de dedicar uma palavra à extraordinária gestão por parte da minha orientadora e chefe, Professora Doutora Isabel Fernandes (e também à Dra. Daniela Macedo). Lidaremos, não obstante, com doentes que apresentarão um significativo atraso diagnóstico e terapêutico, por inerência. Atente também nas patologias do foro cardiovascular, endocrinológico, entre outros. Todo o Serviço Nacional de Saúde vai ter de lidar e suportar toda esta distorção temporal. As cabeças de todos os médicos deste centro hospitalar estarão particularmente preenchidas a lidar com tudo isto.
Por outro lado, creio que estarei também muito mais formatado para reconhecer e lidar com situações limite e, quer queiramos quer não, isto acaba por nos dar traquejo pelo que se vive e experiencia.
Espero honestamente que a minha mente não esteja ocupada por esta pandemia. Esperemos que estes processos mutagénicos do vírus não inviabilizem ou atenuem as conquistas que as vacinas já aprovadas e lançadas prometem.
Para além disso, reflectirei certamente nos efeitos perniciosos que esta pandemia terá no tecido económico do nosso país, com consequências nefastas para todos. Sem excepção.
Num dos artigos que escreveu para o Observador comentava, e cito: “Hoje entubámos e ventilámos um jovem. Sabem poucos quanto custa observar, impotente, a deterioração marcada e acelerada do estado clínico de um doente no qual se aposta ao máximo no que concerne a estratégia terapêutica. (…) Insistem, em tom de desafio, em negar a ciência e em fundamentar opiniões e fanatismos políticos e ideológicos em castelos de cartas conceptuais. Acreditam que a ciência e a política estão ao serviço uma da outra.
Vou ser concreto e objectivo: Nada disso me importa. Eu não sou político. Sirvo os interesses de quem trato. A minha ideologia é a Medicina”.
O que tem corrido mal foi por más decisões políticas? Tem sido o excesso de convivência entre as pessoas? Faltam tomar decisões?
Miguel Esperança Martins: Cinjo-me à minha prática clínica. Fora do politicamente correcto, sempre assumi que estou aqui como médico e apenas e só como médico. É factual que a situação piorou muito, os números são públicos. É objectivo constatar que a pressão hospitalar aumentou marcadamente. E para isso concorrerão factores epidemiológicos, bem como factores intrínsecos ao próprio vírus e respectivas variantes. Não creio que seja fase para balanços e análises críticas e acusatórias. Atenção, não estou a exprimir-me no sentido de defender que não se deva discutir. Creio é que, acima de tudo se deve discutir o assunto com a profundidade devida com quem tem dados e conhecimento suficiente para isso. Não opinarei sobre isso, pois tenho como máxima falar sobre aquilo que me é dado a ver vejo e sobre o que realmente sei, que é clínica. No que concerne a análises políticas não tenho competências, nem sou credenciado. Não sou epidemiologista, não sou especialista em saúde pública, não tenho perante mim os dados estatísticos em toda a sua plenitude. Joana, aquilo que mais impressão me causa, no espaço opinativo em Portugal, é ver e ouvir muita gente que nunca entrou numa unidade COVID, que nunca viu um doente COVID, que nunca entrou sequer num hospital onde se prestam cuidados a doentes COVID, que não tem um curso de medicina, que não tem fundamentos sólidos de estatística aplicada, que não tem qualquer base epidemiológica para emitir pareceres e julgamentos acerca da praxis hospitalar, opinar com a pseudo-seriedade, credibilidade e equidistância que advoga. Eu continuo aqui, à espera de ver tanto especialista de aparente primeiro plano aparecer na urgência, numa enfermaria, numa unidade de cuidados intensivos. Não me exprimo acerca do que não domino. Na vida temos de nos saber pôr no nosso lugar. O meu lugar aqui é como médico. Mesmo quando rabisco as minhas crónicas, faço uma descrição da dimensão humana de cada realidade, com o máximo rigor científico. E por aqui me fico.
Vamos falar sobre os negacionistas?
Miguel Esperança Martins: É um outro fenómeno que me tem maravilhado. Este é um país de Sísifos e Neros. Nós, clínicos, somos Sísifios (personagem da mitologia grega que foi condenado a repetir ciclicamente a tarefa de empurrar uma pedra até ao topo de uma montanha). Isto é, empurramos permanentemente a pedra até ao topo da montanha e lidamos sempre com mais uma enxurrada, mais uma avalanche. Voltam a lançar-nos a pedra pela montanha abaixo, e nós carregamos, todos os dias, a pedra montanha acima. E num país onde há muitos Sísifos, coexistem muitos Neros (imperador romano conhecido pela sua tirania, há correntes históricas que acreditam que tenha sido o próprio a ordenar o grande incêndio da Roma Antiga, para "limpar" a cidade ao seu gosto e perseguir cristãos) que tocam harpa e cantam enquanto Roma arde. A mensagem que quero deixar é que é essencial que as pessoas se apercebam quem é Nero e quem é Sísifo. Basta estar atento.
Depois de todos estes tempos sai mais rico?
Miguel Esperança Martins: Indubitavelmente. A experiência faz sempre o Homem e amplifica sempre a qualidade da sua prática. Há uma citação fabulosa que creio que ornamenta a parede em frente ao anfiteatro Mark Athias, que é de Rhazes, e fala sobre a importância da leitura para preparar o espírito crítico para o médico, embora não o faça por completo. O que faz o médico é a prática. Esta experiência prepara-me como médico, para lidar com uma plêiade de situações clínicas com as quais não tinha lidado ainda e prepara-me como Homem em relação com o próximo, porque as pessoas e as situações limite acabam sempre por dar forma ao nosso carácter. Há coisas que nem daqui a 40 ou 50 anos eu e os meus colegas esqueceremos. Tornei-me num ser menos optimista, talvez mais realista e cauteloso. Seguramente melhor preparado para contextos que há alguns anos seriam inimagináveis.
Esta pandemia foi alguma lição que a Humanidade precisava de ter?
Miguel Esperança Martins: Essa é uma boa pergunta que me vai obrigar a pensar... (suspiro longo) Eu diria que não há propriamente lições, penso que quanto muito existem ensinamentos que devemos extrair, particularmente no que diz respeito àquilo que não conseguimos controlar e sobre como saber lidar e conviver com aquilo que não foge ao nosso controlo. Renovou em todos a velha máxima de que sozinhos talvez possamos ir mais rápido, mas juntos vamos mais longe. Perceber que todos juntos conseguimos potenciar o nosso capital humano nas suas mais diferentes valências de um modo completamente diferente. Talvez relembre a grande maioria das pessoas do que é empatia e respeito pelo próximo. Pode também ter aflorado algumas noções de equidade e justiça. Ensinamentos sim, mas não lições. Lição é um termo demasiado cru e duro e que pressupõe que esta doença triunfou sobre aquilo que foi a capacidade de resposta de uma humanidade que sobre ele triunfará. Levou e levará alguns de nós, mas não triunfou coletivamente sobre a humanidade. Subsiste e subsistirá sempre a Esperança.
Joana Sousa
Equipa Editorial