Avisou-me a meio da conversa que tencionava trabalhar até aos 90 anos. Foi diante da Prova Nacional de Acesso, realizada em 2019, que pensou que aquele seria o momento da derradeira decisão da sua carreira. Tinha a convicção de seguir Reabilitação, mas a PNA não lhe correu como esperava e acabou por optar por Medicina Geral e Familiar. Por vezes, os caminhos que parecem estreitar são os certos para se chegar onde não se imaginava estar.
Trabalhar até aos 90, foi esta a frase que mais me marcou de tudo o que foi contando. A longevidade da vida e das suas ambições pessoais são convicção absoluta, sem espaço para quebras ou receios. Há, no entanto, algo curioso nele, aquilo que hoje entende ser o seu percurso, pode mudar num próximo instante. “Volátil?”, Pergunto-lhe. Não, apenas livre de aceitar que uma convicção, ou uma meta, não tem de ser a mesma para sempre, característica que atribui às pessoas que lhe são semelhantes e, tal como ele, racionais.
Dele há muito a contar, mesmo tendo apenas 25 anos, acabados de fazer a 23 de dezembro, conta que a divisão de presentes nunca foi problema, as festas entre os amigos da escola é que ficavam mais penalizadas, mas como vê sempre o copo meio cheio das situações, eram as férias prolongadas que gostava de viver e de nada lamentar.
Afonso Schönenberger Braz está no primeiro ano do internato em Medicina Geral e Familiar, na USF (Unidade de Saúde Familiar) São João do Estoril.
O apelido Schönenberger dá-lhe a dupla nacionalidade Suíça, herança da avó materna que, embora já não vivendo lá, mantém a família e raízes. Já o nome Braz herdou-o do pai e do vínculo ribatejano que tem, concretamente a Santarém, terra onde nasceu e viveu até vir para Lisboa estudar Medicina. Da Suíça recorda as canções de embalar cantadas pela mãe, quando ele e os outros dois irmãos eram pequeninos. Agora mantém apenas pequenos hábitos, como degustar fondue de queijos, quando toda a família se reúne. De resto, o alemão aprendeu-o em contra-relógio, enquanto já estava na Faculdade e através da Associação de Estudantes (AEFML), língua que não quis perder do seu código genético e porque dela precisava para estudar o 4º ano completo de Medicina em Munique. Se já dominava o alemão para estudar Medicina um ano inteiro? Não, nada disso. Foi essa barreira da língua que o fez quebrar nos primeiros tempos em que nada entendia do que ouvia nas aulas e que entre muito esforço, estudo e o aliado café, conquistou o êxito no segundo semestre, fazendo tudo o que lhe era exigido. Esta foi a sua grande emancipação, hoje sabe que saberá viver em qualquer lugar do mundo.
Aos 17 não estava preparado para as escolhas profissionais, mas a Medicina não foi decisão aleatória, na verdade o código genético voltava a manifestar-se, através da mãe farmacêutica hospitalar, do avô materno Pediatra e até consideraria abraçar outras paixões como na área de gestão/economia, ou a História, gosto tão partilhado pelo pai. Pela transição do crescimento foi abrindo a curiosidade a outras experiências, foi escuteiro e praticou Pólo aquático, mas uma lesão no joelho e no tendão de Aquiles viria a fazê-lo parar e a evidenciar-lhe as fragilidades que, por regra, se mostram menos. Hoje, ao refletir sobre o que é o seu “calcanhar de Aquiles” diz ser o medo de falhar e desiludir os outros. Há nele um balanço entre um anjo e um diabo. Se o diabo o provoca permanentemente a soprar-lhe ao ouvido que vai falhar, o anjo inspira-o a que o medo não o trave e que avance mesmo sem conhecer o terreno que pisa. Coragem ou loucura? Ambas, mas adicionadas com a auto-estima que foi trabalhada através de uma sólida família que lhe dava liberdade de escolhas, mas exigência de ação.
Da vida académica tem um já saudoso sorriso, membro da AEFML, foi padrinho de praxe de alguns mais novos, mas afirma ser pouco defensor de acolhimentos agressivos ou humilhantes, prática aliás pouco habitual na Faculdade. Em 2018 foi o coordenador-geral da Noite da Medicina, o grande momento das suas vidas académicas que coloca em palco as sátiras e alguns acertos com o que vai menos bem no ensino, “somos nós a dizer o que não está bem e o que queremos mudar, é uma Noite que é para fazer pensar”, diz-me. Mas o ensino tem também grandes referências para Afonso, Carmo Fonseca, Bruno Silva Santos, Luís Costa ou Miguel Castanho são alguns dos professores que refere com grande sorriso, pois havendo aulas mesmo sem presença obrigatória, elas lotavam só para os alunos os poderem ouvir.
Seguiu-se o 6º ano e ia conciliando estágio hospitalar com o estudo de preparação para o exame da Prova Final de Acesso. Não satisfeito com a ambivalência do desafio, decidiu ir ainda para a Suíça um mês e meio fazer cirurgia geral. No seu estágio curricular de fim de ano, passado em Santa Maria, assistiu à morte e contactou de perto com a vida, com a solidão, referiu-me que muitas vezes foram os últimos a estar com doentes que não puderam despedir-se em condições das suas famílias. Seguiu-se a entrada na especialidade, Medicina Geral e Familiar, que durará 4 anos. Como médico de Família, o seu público é o mais abrangente de todas as áreas, tanto recebe pessoas idosas, como recém-nascidos, ou adolescentes. Neles tem que ler comportamentos, olhares, ou entender apenas pela linguagem corporal, ou pelo silêncio, aquilo que sentem, aquilo que lhes dói. Tarefa complicada para quem, principalmente agora, não pode sequer trocar na comunicação gestos de empatia para melhor descodificar o outro.
Depois do treino na especialidade, Afonso fará uma prova final e só depois se poderá candidatar a diferentes centros de saúde, ficando como especialista e assumindo a sua própria lista de doentes.
Da entrevista marcada com antecedência, acedemos ambos que vamos trocar o encontro presencial pelo digital. Para conforto de conversa e começo de manhã partilhamos o gosto imenso pelo café, paladar que lhe começou a despertar para aguentar as longas noites de estudo para a Prova final de Acesso e depois para estudar em Munique.
Como é o caminho de alguém que começa o seu internato e vê o Mestrado Integrado em Medicina cumprido. Como lida com o dia-a-dia um recém-médico, num cenário de catástrofe como a atual pandemia, foi o que fomos perceber.
Faz parte do grupo de alunos que fez pela primeira vez a Prova de Acesso à especialidade depois do famoso Harrison. Mas já me disse que não correu bem. Porquê?
Afonso Braz: Queria ter evitado ao máximo ter feito parte deste grupo inicial. Quando disseram que era o 13/19 (entrada e fim de curso) a fazer a Prova pela primeira vez, eu não gostei. Ainda bem que esta mudança aconteceu, ela era necessária, porque agora tem casos clínicos, faz-nos pensar. Mas foram implementados diferentes métodos de estudo para diferentes pessoas e uns iam estar mais preparados que outros. Só depois deste ano se percebeu com garantias o que era realmente para se fazer, mesmo antes de se chegar ao dia da Prova. Agora, olhando para trás, teria feito um método de estudo diferente. O exame ficou muito aquém das minhas expetativas e na semana seguinte quebrei totalmente. Tive um ano inteiro a trabalhar e não consegui a posição que queria.
Para o Afonso, o que é quebrar?
Afonso Braz: Eu aguento-me. Não transpareço. Posso estar muito mal, mas na rua e na relação com os outros, ninguém percebe. Só os meus amigos mais próximos. Na semana seguinte fui para a viagem de finalistas e então resolvi que era a altura certa para parar de beber café, também não correu nada bem, fiquei cheio de dores de cabeça. (ri) E agora que olho para trás sei que na altura olhamos para o exame e pensamos “ou é isto, ou nada” e achamos que isto nos define, que define a nossa vida. Nós, estudantes de Medicina, habituamo-nos ao perfeccionismo e depois, quando falha algo, achamos que é uma situação deletéria. E não pode ser. Porque perdemos a autoestima, sentimos que não somos bons o suficiente, principalmente depois de tanto esforço, de ter dormido mal, de ter tido pesadelos. Nos dias antes da prova sonhei que tinha falhado, depois veio mesmo a Prova e ela correu-me mal. No dia em que percebi quanto é que ia ter no exame, acordei de um pesadelo, e o meu pensamento foi, “já passou, tive má nota, mas foi só um sonho”. Mas 3 segundos depois percebi que era tudo real. Agora afirmo com toda a convicção que a vida não acaba ali, é só um exame!
Esta sensação de falha advém de uma ideia de competição, ou apenas exigência pela perfeição?
Afonso Braz: A competição também existe, mas é dentro de mim, não transparece. Mas é apenas com o intuito de eu melhorar e não fazer com que alguém tivesse menos, só para eu ganhar com isso. O que me fez doer foi o meu orgulho próprio, de não ter sido bom o suficiente. E hoje insisto muito neste tema porque quero que os meus colegas, que se estão a preparar para o exame, saibam que ele não nos define. Se o exame não correr tão bem, e então, o que é que acontece? Há vários caminhos, podem tentar de novo, ir para fora do país e fazer a especialidade que tanto querem. Nada acaba, é só um exame. Há problemas sérios na vida e este não o é.
Entrou há pouco tempo (cerca de um mês) na sua vaga de especialidade, onde vai exercer Medicina Geral e Familiar. Como são estes seus novos tempos?
Afonso Braz: Estou a habituar-me a uma nova família. Agora à minha nova tutora que é ótima, tenho uma equipa com grande dinâmica e tenho-me adaptado tranquilamente porque a especialidade está muito organizada. Ali somos protegidos, para ir aprendendo com o tempo e ir entendendo como funciona o centro de saúde. O crescimento é gradual e integrado e aprendemos a fazer bem, com tempo. Todas as semanas temos 4 horas de formação, ou discussão de artigos, ideias e apresentações, é muito estimulante.
Como têm sido estes tempos de pandemia para contactar com os doentes? Eles vão ao centro? É maioritariamente à distância?
Afonso Braz: Neste momento todos os Centros têm um modelo híbrido, ou seja, muitos assuntos consegue-se resolver por telefone e mail, e isto para tentarmos proteger o contacto entre todos. Mas depois há aspetos essenciais da saúde e que não podemos descuidar, a saúde materna, infantil e mesmo a geriátrica. Há um seguimento que não se pode abdicar, porque existe a pandemia, as pessoas vêm na mesma e estão protegidas, assim como nós. Mas têm que vir.
É este o primeiro contacto real com os doentes?
Afonso Braz: Essa grande responsabilidade senti-a pela primeira vez no meu ano comum do internato geral. Nessa fase já temos grande contacto com o doente e há responsabilidade perante o que pode acontecer. Existem poucas coisas na vida como alguém a agradecer o que fizemos por ela e há momentos assim desde o internato. Há pessoas que não conseguimos salvar, mas pequenas coisas que não são terapêutica, como ver se a pessoa tem frio e aquecê-la, marcam-nos muito. É preciso sentir como está a pessoa e a Medicina Geral faz muito isso. É curioso porque agora com a máscara e a distância se desvirtua tudo aquilo que, convencionalmente, deveria ser a nossa área. Deveria haver uma relação muito próxima com os doentes e agora até os ouvimos por telefone, lemos o que escrevem, perde-se a proximidade que também nos fala das pessoas. É o contacto que nos diz algo da pessoa. Os contactos que foram estabelecidos antes da pandemia vão-se manter, mas os que surgiram agora, têm uma distância tal que não nos permite ler a pessoa da mesma forma. Ver só uns olhos não é a mesma coisa.
Perdeu-se o toque. Nem que fosse tocar apenas no ombro em sinal de conforto.
Afonso Braz: Faz muita diferença sim. Claro que se é preciso examinar um doente, esse procedimento continua a manter-se, mas mudou tudo, perdeu-se esse laço de proximidade que era o que dava confiança ao doente. Porque havia aquele sentimento que o doente tinha o seu médico de família “mais próximo”.
Como é que é lidar com o público tão abrangente quanto um bebé que acabou de nascer e uma pessoa com bastante idade e que já mal se expressa?
Afonso Braz: Esta é a área da Medicina mais abrangente, ainda mais que a Medicina Interna que não vê bebés, mas a nós faltam-nos os exames complementares que não estão logo ali connosco, para sabermos o que a pessoa tem. Claro que mandamos fazer exames e depois observamos, mas não é imediato. Mas esta é a área mais heterogénea, onde vamos ouvir “sinto-me mal” e isso até pode traduzir algo grave, ou geralmente nada que inspire cuidados extremos. Aquilo que fui observando em Santa Maria, nas urgências, é que muitas vezes aquilo que a pessoa se queixava, era reflexo de algo que já nem era o que se indicava.
Sente falta desses exames complementares para fundamentar melhor o seu diagnóstico?
Afonso Braz: Sim, por vezes sim. Por isso é que em questões agudas tem que se ir para à urgência. Há países que têm mais exames complementares de diagnóstico nos Centros e isso permite não enviar tantas pessoas para as urgências comuns, o que desentupia os hospitais. Por outro lado, se vamos dar mais capacidades diagnósticas, isso vai entupir os Centros de Saúde. E nós já temos muitas tarefas a executar e que passam pela periodicidade do acompanhamento, a medicação, seguir todo o processo do programa instalado, não é pouca coisa. O que quer dizer que nesta fase em concreto, o trabalho não diminui mas aumentou, até porque hoje em dia temos as vigilâncias de Covid. A estas pessoas fazemos chamadas e avaliamos como se sentem, se já podem ter alta, ou não.
Foi preciso ter algum tipo de formação especial para acompanhar estes doentes Covid?
Afonso Braz: Não, mas eu leio artigos e vou vendo o que de importante sai para estar documentado. Mas há serviços que motivam essa aprendizagem. E às vezes é importante assumir que não sabemos algo, porque o próprio tempo ainda não nos ensinou uma questão. As coisas levam tempo e não o podemos acelerar só porque queremos todas as respostas. Mas é assim em todas as áreas.
Tem medo de ficar infetado?
Afonso Braz: Medo pessoal não tenho. Tenho mais medo de ficar infetado e que as pessoas por causa de mim fiquem infetadas, isso seria terrível para mim. Imaginar que eu poderia causar algum mal aos meus irmãos, aos meus pais, ou avós, isso seria terrível, até porque sabemos que deixa sequelas. Quanto a mim, isso não me demoverá de ir para o trabalho, porque no fim de contas nós somos profissionais de saúde e se não reagirmos agora, então quando vai ser?
Este inverno tem sido mais brando com os pedidos de ajuda das típicas gripes de inverno?
Afonso Braz: Confesso que não. Temos muitos pedidos de medicação, mas o grande peso que noto é que as pessoas vêm mais tarde aos centros de saúde e até ao hospital. Chegam até nós num estado já mais grave. A pandemia está a causar este problema de seguimento e não porque os profissionais não os sigam, mas porque as próprias pessoas “desaparecem”. E o nível de descompensação ainda se vai ver mais adiante.
O Afonso do dia em que gravamos esta entrevista acha que vai fazer o quê quando acabar os 4 anos de especialidade?
Afonso Braz: Não faço ideia… (fica a pensar) Ainda estou em fase de reflexão sobre o que realmente quero. Mas entretanto estou numa pós-graduação de Medicina Desportiva, eu sempre gostei muito de desporto e é uma área onde acredito poder vir a dedicar-me. O que eu sei hoje é que vou terminar a minha especialidade.
Está preparado para trabalhar até aos 90 anos?
Afonso Braz: É verdade, eu disse mesmo isso. (ri) Eu acho que até vou conseguir correr ainda! E vou ver imensos filmes e séries e passear junto ao mar.
Talvez no futuro breve sinta o impulso de partir para a Suíça ou Alemanha, mas sem despedida total de Portugal, o país que diz amar profundamente pela forma como as pessoas expressam os afetos e como é contornado pelo mar.
Da longa vida que terá para lá dos seus 90 anos, sabe que regressará sempre, já que Portugal lhe prende o coração e a sua verdadeira identidade.
Terno e assertivo, nega os elogios de corajoso só por ter ido sem se saber expressar bem para uma cultura diferente, num apartamento com outras tantas nacionalidades do mundo. “Coragem é alguém que enfrenta esta pandemia e vai para os Cuidados Intensivos trabalhar. Ou quem se levanta todos os dias e tem de sair para trabalhar porque tem uma família para sustentar”, disse-me.
Joana Sousa
Equipa Editorial